sexta-feira, 31 de maio de 2013

31 de Maio

Os Terríveis Nós

Maus e Solitários sacudiu a lagoa parada que era o Rádio amhitariano hoje em 1927. Dildora Motley [inevitavelmente] autorou essa primeira radionovela, avó da sua neta sete mais destrutiva, a telenovela, e se sagrou o pioneiro mundial [não reconhecido] de tal gênero vagabundo [o adjetivo (segundo quem o conheceu) não o teria desagradado].

O Menino Terrível da literatura amhitariana não tinha publicado nenhum livro [e nem o faria nunca, pois considerava que a indústria editorial transformava os escritos em banalidade] – como [acrescentava o autor] toda indústria fazia.

Maus e Solitários começava com gente normal [famílias normais, mães, namorados e cachorros normais] e continuava como tal. Já no terceiro capítulo a inveja disfarçada, a alegria da desgraça alheia, a coragem diante dos fracos e a pusilanimidade diante dos poderosos cobriam a trama dos costumeiros assassinatos e casamentos [a essência de toda novela] com uma leve pátina como sujeira velha. Maus e solitários não eram os membros das duas poderosas famílias de Shamaerkhant que disputavam o controle da cidade – éramos nós, os terríveis nós – berrava Dildora.

Demitido após o 33º capítulo, o autor conheceu breve glória depois da consolidação do Partido Soviético do Uzbequistão, que acreditava que sua crítica se destinava à família pequeno-burguesa. Sua segunda novela afirmou no entanto que a má-solitude não conhecia fronteiras ideológicas, e perdeu o emprego uma segunda vez.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

30 de Maio

Santa Indiferença

Os jesuítas alemães Christopher Wasserhahn, Friedrich Waschbecken e Gerhardt Küchenspüle pagaram dois dinares ao garoto que manejava o barco que atravessava o Syr-Daria e penetraram em território amhitariano ao meio-dia e sete minutos do dia 30 de maio de 1611. [Mediram rigorosamente o horário do histórico momento].

Previam a pregação em mercados lotados – alguns aceitariam e começariam a falar latim – soldados de cara amarela os cercariam – um potentado pagão os julgaria – desmoralizariam os deuses locais em um debate teológico – o potentado mandaria queimá-los – o Papa saberia – seriam santos.

Não havia mercados na outra margem. Nem cidade. Andaram dias na poeira. Quando acharam uma, ficaram felizes com a atenção da plateia – até que viram que o mesmo interesse era dado também a um mercador que alardeava suas panelas. Exigiram ver um chefe local. Ameaçaram-no com o Inferno. Ele lhes deu horríveis pães de casaca de cevada e passou a escutar um menestrel de canções obscenas. Ninguém discutia, ameaçava, defendia sua fé pagã. Apenas sorriam e viviam como sempre.

Desanimados recruzaram o Syr-Daria uns sete meses depois [não tiveram ânimo de anotar o momento preciso]. Um deles tentou consolar dizendo que os amhitarianos ao menos são indiferentes à palavra e não a cumprem. Melhor que os povos de Deus na Europa, que se entusiasmam com ela e não a cumprem mas nem isso teve grande efeito animador.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

29 de Maio

Danças

O geógrafo ateu materialista soviético Serguei Kovinev [previsivelmente] explicou o início da dança em Amhitar como um roteiro no qual não faltaram o Representante da Classe Exploradora [o Xamã], aqueles que se faziam de Proletariado da época [os plantadores que foram pegos colhendo lenha escondido na propriedade do Xamã] e a Boçalidade e o Arbítrio dos Dominantes [exemplificado pelas brasas].

Seis décadas depois Gulshanoy Sabina [a mistura de um nome masculino e feminino (como tudo em Gulshanoy) era uma provocação] surpreendentemente considerou correto o roteiro, apenas tomando-a pelo sinal trocado. A história canônica afirma que em tempos imemoriais [que Gulshanoy sem citar fontes fixa em 29 de maio de 1.437 A.C.] certo chefete local [o Xamã] puniu os camponeses jogando brasas aos pés deles enquanto um pífaro tocava uma ridícula música de encantamento de serpentes.

Gulshanoy [pós-moderno em tempos pós] nada considerou estranho no episódio – o tal Xamã gostava de brasas [e andava ele mesmo sobre elas]. Além disso a história representaria uma metáfora da vida amhitariana e porque não da vida toda. E também explicaria porque em Amhitar [segundo o pensador] todos praticavam ridiculamente a dança – aliás a mais ridícula das artes.

Uma visão um pouco alternativa [partida mais dos seus críticos] afirma que Gulshanoy cedeu à vingança e à fantasia – vaiava os dançarinos porque, no fundo, não sabia dançar. 

terça-feira, 28 de maio de 2013

28 de Maio

Os três, em um

Jorge rasgou hoje as fronteiras de Amhitar, Guilherme também viajou para lá e Frederico seguiu os dois [muito dialeticamente a aparição se deu em trio]. Essas três viagens [de três possíveis pessoas] na verdade se resumem a uma – a travessia dele ao impossível [e dialeticamente real] Reino de Amhitar.

Negada por três vezes [tal número lhe crava os dentes], as últimas páginas da fracassada edição das Conferências sobre Estética logo depois do seu último curso na Universidade de Berlim em 1828 revelam que o temor do serviço militar prussiano e de que uma bala napoleônica lhe arrancasse os miolos encheram as suas [poucas] malas e o levaram à fuga [em incerta data – o período menos controverso é 1802].

Chegado à beira do Amur-Daria, longe do Valhala e de Goethe, da cerveja preta e das Gretchens de dentes podres descobriu que o mundo tem um Espírito [pasmem]; que este [ao contrário do Espírito Santo cristão] se desenvolve; que [fanático por tríades] tem três fases, três inicios e três finais além de trindades outras. Também que, se escrevesse complicado todos o admirariam por sua profundidade. [O fato de tais descobertas não serem exatamente lisonjeiras explicam o pequeno entusiasmo em Amhitar sobre a data].


Voltando ao frio e às salsichas gordurosas o rapaz se tornou Jorge Guilherme Frederico Hegel. Os interessados em acentuar sua germanidade apagaram-lhe da biografia qualquer lição amhitariana.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

27 de Maio

Caminhos

Sherzod Gulnora [inadvertidamente] pronunciou uma das duas banalidades que começaram a literatura de autoajuda em Amhitar no dia 27 de maio de 1699 dos hereges [27 de Dhu'l-Qa'dah da Hégira] quando chegou a Murgab-Satlyk. A cidade [em si] apresentava pouco interesse [dois testemunhos independentes a descreviam como a mais feia das cidades de Amhitar (talvez do mundo) nos dias de hoje (talvez em todos os tempos)].

Não o destino mas a viagem, ou não ela e sim suas dificuldades. As fofocas [sempre elas] diziam que o primeiro caminho é coalhado de assassinos turkhmans; furacões destruidores acossam o segundo; no terceiro os degoladores de punhais de prata fazem seu paraíso, etc. etc. [até mesmo um improvável fantasma de Genghis Khan guardaria uma das rotas.] Tendo deixado o medo para trás [ou seguido em frente apesar de levá-lo a tiracolo] o jovem Sherzod pronunciou uma de suas tolas frases:

o importante não é o destino e sim o caminho

e não são poucos os autores que têm faturado atribuindo a essas palavras algo mais que um comentário concreto sobre como chegar a uma cidade hoje debaixo de 6 metros de pó.

A segunda das frases ocorreu quando [já velho e feliz] Sherzod soube que a cidade a que chegara não era Murgab-Satlyk mas outra. Sem esvanecer o sorriso falou

É possível perder uma oportunidade e ainda assim tudo terminar bem

e tal foi o título de um best-seller amhitariano por 27 meses seguidos.

domingo, 26 de maio de 2013

26 de Maio

Geometrias

A Ciência [ou o Delírio] da Teologia engoliu lamentavelmente a Arte da Geometria em Amhitar. [Tanto o “delírio” como o advérbio se devem (de maneira inevitável) ao historiador materialista Iusya Marzhaffar]. Nem tanto assim, escreveu seu contemporâneo Java Kharlilah [que, como todo conservador era teísta, embora sua fé estivesse sempre a mudar de deus].

Segundo este último [em explicação se tornou canônica] a diferença entre essas atividades [ou delírios] deve-se menos à divindade que à moral. As terras começaram a ser divididas. Começaram os problemas de como medir as terras. Estacas foram cravadas, cordas foram estendidas e abstrações como ângulos e volumes principiaram a ser estabelecidas.

Tudo concorria para que Amhitar roubasse à rival Grécia [que só o faria um par de séculos depois] a primazia na arte que [de maneira injusta] seria conhecida como de Euclides. Até que um profeta veio [eles sempre vêm]. Disse que a ganância estava a guiar os homens. A divisão de terras era sinal dessa ganância. E a melhor forma de combatê-la era destruindo os diabólicos meios pela qual se dava. E os primeiros compassos, transferidores e réguas do planeta se tornaram cinzas.

As reações ante esta [multilamentável] perda se resumem a duas: uns praguejam contra o obscurantismo anticientífico, outros dizem que a justiça de Deus [embora às vezes desajeitosa] á sempre bem-intencionada. O debate prossegue sem fim, como duas retas que só se cruzam no infinito.

sábado, 25 de maio de 2013

25 de Maio


O Monte
O improvável Utkirbek Fashoda espetou no dia 25 de maio de 1851 sua flâmula no Pico Al-Dhordhori [a discussão sobre qual o desenho ostentado na flâmula varia desde um signo pornográfico até as Armas Nacionais. Por razões óbvias esta última tem sido mais difundida]. O governo do Semisultão, a ocupação militar russa, o regime dos Cem Dias, a Primavera das Flores de Barro, a breve ditadura do General Chavkat, o domínio pessoal Trotskista, o governo do Partido Comunista da Repúblicas [traidora] do Uzbequistão, todos os sistemas se igualam na bajulação ao herói da mais alta das montanhas amhitarianas.
Improvável porque baixinho, gordote, com dois dentes entaramelados e que puxava da perna esquerda – Utkirbek seria – dos candidatos à imortalidade - o último, se tanto. Tanto improvável quanto ele apenas a montanha. Em uma época em que os teodolitos já existiam ninguém soube precisar a altura do monte [tendo as medições uma inacreditável variação de 379 % entre si ]. A localização é também sujeira a críticas, uma parte dos geógrafos do país nunca tendo aceito a versão oficial de que o monte se localizaria no paralelo 47, pois lá só haveria pântanos e morcegos.
Uma nota na edição de junho de 1962 da Revista do Proletário Amhitariano quebrou o jejum de perspectivas não-triunfalistas. O baixinho Utkirbek teria subido um monte também baixinho e redondo, e só uma sucessão de equívocos explicaria sua glória. Tal verão compreensivelmente caiu no oblívio.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

24 de Maio

A séria nudez


No dia 24 de maio de 1923 Juju Shilmora [mostrando ousadia da qual um par de segundos antes não se sentiria capaz] desfez o laço da falsa cintura. O négligée cinza se amontoou aos seus pés e a partir de então só o flash da filmagem cobriu sua nudez de vinte e um anos cabelos na cintura e olhos negros – entrou para a história como uma das únicas sete garotas que posaram nuas em Amhitar até 1990. A estatística [de confiabilidade sofrível] se deve ao atual Círculo Pudico-Moralista de Amhitar.

Certo relatório da Seccional do Turquestão afirmou então que as moças do país se marcavam pela timidez quanto a certos assuntos – e o país pela baixa natalidade. As trêmulas mãos de Lênin garrancharam ordem para um filme de propaganda nas escolas femininas.

O filme consistia só em uma voz em off exaltando o potencial da mulher para a revolução, o trabalho e também para certos rituais a dois que não deixam de trazer satisfação desde que subordinados aos propósitos do proletariado - enquanto a câmera rodeava por onze vezes o corpo [perfeito, segundo extáticas testemunhas] da jovem. Olhando firme a câmera [com quase orgulho] Juju encerrou levantando o braço [e balançando leves os seios morenos] e gritando Viva a Revolução!

Em janeiro do ano seguinte o resultado foi mostrado a Lênin. A versão de que foi isso que causou o derrame que o matou, embora apócrifa, não deixa de acariciar o ego amhitariano.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

23 de Maio

Dia dos paravampiros


Um [quase impossível] decreto [de apenas três linhas]do Politburo do Partido em um canto de Página do diário semioficial A Voz do Operariado Vermelho no dia de hoje em 1956 sacramentou Amhitar como o único país do mundo a reconhecer de forma [quase] oficial a existência de vampiros em seu território. [Tal excentricidade se explica porque semanas antes um Congresso Centro-Asiático de Sugadorismo tinha sido noticiado no mesmo jornal em manchete e seis páginas internas como forma de não publicar nada sobre o confuso Congresso Secreto que no mesmo momento denunciava os crimes do falecido Stalin].

O tal congresso fora frequentado só por nove interessados [ou malucos, segundo a opinião majoritária]. Os vampiros amhitarianos pouco ou nada teriam em comum com seus concorrentes: detestavam castelos, comiam picadinho de vaca, o sol lhes era indiferente. [Na sua pretenciosa Declaração Final sobre os nossos Dráculas os autoditos especialistas diziam ser irrelevante a questão de se os vampiros são vivos os ou mortos.] O que dá certo erotismo [e alguma tolice] aos vampiros de produção interna é que [sem nem pensar em sangue] vivem de leite de mulher. Mas não de qualquer: jovens, bonitas e não se importam se não tiveram filhos – eles conhecem o seus caminhos [diz a pretensa Declaração, sem deixar claro que caminhos são esses]. A pouca verossimilhança [além de certa tolice] de tais [quase] vampiros explica a sua nenhuma penetração em coletâneas ocidentais.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

22 de Maio

A segunda morte de Iqbol Chavkat


Somente o tédio me domina” – disse [baixinho] o General Chavkat três milionésimos de segundo antes de a bala se alojar no seu globo ocular esquerdo [sendo inexplicável como o relato de suas últimas (e pós-últimas) palavras foi tão pouco questionado desde que foi encontrado em uma pilha de folhas secas e ferro retorcido no dia de hoje em 1920, 113 dias depois].

Iqbol Chavkat conseguira a glória do poder. Em um dia percebeu que todos os sorrisos, filés com champignon e macias coxas femininas eram dele – a um estalo de dedos. Esse dia de êxtase se estendeu por mais outro. E outro mais. E foi seguido por um quarto dia. Até o décimo-nono. No vigésimo os mesmos soldados que o tinham posto no cargo o amarraram a um poste e se alinharam esperando uma ordem de fogo.

Somente o tédio me domina” – pensou o ex-Presidente de Amhitar e além da dor de cabeça, nada aconteceu. Os tolos gritos de soldados para desfazer o pelotão, os recrutas a limpar o solo. Ele se viu livre, ninguém lhe dava importância. Não sabia se vivia. Pouco importava [podia mover-se]. Saiu por três dias. E ninguém lhe dirigiu a palavra. Alguém o fez no fim do dia, um improvável emissário do diabo – um limpador de ruas. Este lhe confirmou as más notícias.

Chavkat contestou:

- Não estou morto. Estou só.

O pouco dramático mensageiro disse:

- É o mesmo – e ao contrário do que acontece nos contos fantásticos, não desapareceu.

terça-feira, 21 de maio de 2013

21 de Maio

Onde estou eu


 No segundo depois da festa inicial da Ferrovia Trans-Turquestão um homem desceu à novíssima estação de Shmaerkant no dia 9 de maio de 1881 dos julianos [21 de maio dos gregorianos]. Não um homem mas o homem: sua cara de infinito peso trazia [além da viagem de cinquenta e três horas desde Petersburgo] uma angústia [e também uma esperança básica]. Deu o improvável nome de Rashkolnikov.

Entrou na primeira taberna. Misturou a vodca com o shamuzz cachacístico amhitariano, entrou na segunda taberna, pediu mais e entrou na terceira e nas demais, sempre mais longe, mais fundo e mais baixo naquele mundo de punguistas e mulheres de aluguel.

E encontrou a felicidade: naquela imunda baixeza encontrei a espiritualidade mais viva – disse nas pouquíssimas palavras que jamais diria sobre sua experiência amhitariana. As prostitutas tiveram pena dele, os ladrões lhe deram relógios roubados para vender – aquele homem aparentemente de classe descendo ao baixo-mundo os seduzia. Cantou com eles, dançou, gargalhou.

Seus novos amigos o empurraram de volta ao trem. Disseram adeus.

Cinco meses depois em Moscou rompeu o silêncio: esperava escrever um livro sobre a abjeção completa e para isso fui ao lugar mais abjeto de Amhitar, o mais abjeto dos países. Mas encontrei Deus em meio à abjeção. Ou melhor, encontrei a mim.

No dia seguinte bem poucos jornais anunciaram a morte de Dostoievski.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

20 de Maio

O feliz desgraçado Agostinho


A mais política das canções amhitarianas [até recentemente uma simples canção de ninar] se chama Khasorthieend-al-Zhamapiad, que uma tradição tanto antiga quanto incompetente em linguística convencionou traduzir como Meu Querido Agostinho.

Como todas as canções que todos cantam ninguém pensa muito na letra, e uma sóbria dissertação na Universidade de Alma-Ata em 1968 [em um dos poucos estudos amhitarianos realizados na terra dos inimigos kazaks] realizou a proeza de prestar atenção no que se berrava Ah meu querido Agostinho, Agostinho, Agostinho/ O dinheiro se foi/ a mulher te deixou / os títulos foram tomados / os parentes se esfumaçaram / você está coberto de sujeira / o mundo se foi / meu querido Agostinho, Agostinho, Agostinho!

E descobriram que tal canção encobria uma tétrica história de um tocador de cornetas que a guarda do Xeque durante uma peste em Shamaeerkhant confundiu com um cadáver e o jogou em uma pilha de corpos [da qual só se salvou tocando seu instrumento]. O Politburo do Partido Comunista a considerou derrotista [e um tanto escatológica] e a proibiu, com o efeito de torná-la um [não sem sua dose de ridículo] hino das Brigadas Guerrilheiras Amhitarianas. O Congresso Pan-ahmitariano de tradições culturais [em 1991] rejeitou a tese de que a canção se trata de uma imitação de uma Lied germânica e considerou tal ideia Imperialismo Cultural, antes desta expressão cair em desuso.

domingo, 19 de maio de 2013

19 de Maio

Real Teatro


Heródoto o historiador grego no segundo ou terceiro capítulo de sua História [a localização exata muda de acordo com a versão] publicou uma versão tanto reveladora quanto apavorante das origens da arte teatral. Não seria grego [diz ele] mas sim amhitariano, e objetivava uma imitação [mímesis] a mais perfeita possível da realidade.

Nada tão neutro quanto possa parecer, tal princípio levado às últimas consequências obrigava a que cada lágrima fosse sentida, cada riso fosse real, cada êxtase de prazer fosse autêntico e cada facada vertesse sangue: apunhalava-se de verdade nas cenas de assassinato e envenenava-se de suicídio.

Os costumes mais suaves dos novos tempos [e o medo] fizeram isso parecer bárbaro e as facas de lâmina aguçada em cena foram substituídas por madeira mas não sem uma concessão à velha escola realista – o público não distinguia entre o assim chamado representado e o assim chamado real – e os assassinos em cena eram cuspidos e estrangulados nas ruas, as prostitutas eram assediadas por desejosos clientes e as mocinhas recebiam propostas de casamento, sendo elas já casadas ou moças alegres na vida conhecida como real. Ignora-se quando isso acabou.

Episódio pouco documentado da história, sabe-se apenas que a Academia de Ciências de Amhitar tomou o dia de hoje para rememorá-lo – e para protestar que as edições modernas de Heródoto retiraram a referência amhitariana, substituindo-a pela Pérsia, e mesmo assim suavizando os costumes teatrais.

sábado, 18 de maio de 2013

18 de Maio

Inacreditáveis signos


A origem do Zodíaco de Amhitar não se perde na noite dos tempos e o fato de não poder ser atribuído a uma sabedoria antiga diminui sua ascendência espiritual [assim como seu apelo de marketing] para não pequeno desespero dos astrólogos que tentam [pobremente] fazer a vida traçando mapas astrais na cidade traidora de Tashkent.

Sequer pode ser atribuído a um velho sábio [melhor ainda se fosse um cientista consagrado doublé de místico nas horas vagas, um Isaac Newton centro-asiático]. Documentos [quase que infelizmente] concordantes atribuem a sua fundação a três amigos tomados pelo tédio e pelo shamuzz [uma pinga amhitariana] que em pergaminho [em 1298 dos hereges] na data de hoje dividiram o céu em 900 quadrantes [depois aumentados para 999 sem outra aparente que não a estética].

Por arbitrário que seja o número [e por trabalhoso que seja lidar com 999 signos] o Zodiacal amhitariano parece funcionar melhor que seu concorrente ocidental [segundo três estudos acadêmicos, dois deles da Universidade de Delhi na Índia]. O terceiro estudo [e único amhitariano] afirma que a força de qualquer sistema zodiacal [seja de Amhitar ou qualquer outro] reside em que as pessoas não os levam a sério e assim divertem-se ao lê-lo, apenas vivem suas vidas e lhes dão algum crédito quando geram alguma coincidência, glória esta que dura um segundo, se tanto. Por sua sesquipedal falta de charme tal raciocínio tem aceitação próxima do nada.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

17 de Maio

Os dois diabos, e o terceiro


Gulnora Utkirbek nada fez de extraordinário [as guerras e livros não integrando seu cardápio] exceto [talvez] seja ele a única pessoa de Amhitar [do mundo?] da qual se diz [com certeza (quase) absoluta] que viu o diabo.

Não um – o diabo de Gulnora consistia em 2, na verdade 3 [sendo o número de 9 quase que certamente apócrifo e a versão de 666 muito fantasiosa para ser levada a sério, além de obviamente ser plágio de certo livro pretensamente sagrado da Palestina].

A imagem do homem seguido por um diabinho e um anjinho que lhe dizem contraditoriedades é por demais gasta mas era o que ele sentia, desde a idade por demais significativa de 7 anos, 7 meses e 7 dias. No entanto [e esta constitui sua originalidade] Gulnora sempre percebeu falso esse embate – como se os conselhos para se entregar a e se poupar dos vícios fossem um embate fictício entre dois vigaristas que no fundo querem vender uma máquina de lavar quebrada.

Quando completou 49 anos e 49 dias [no dia de hoje em 1601] Gulnora caiu em si – não só os dois serzinhos eram falsos – ele mesmo o era. Não era bom nem mau – era alguém que não se encontrava, e que diabos [e anjos] só serviam para retardar o encontro com um terceiro diabinho - ele.

A partir daí as versões se dividem: os dois diabinhos sumiram dissolvidos no enxofre, ou nada aconteceu e Gulnora morreu como todos cinco décadas depois, apenas sabendo quem era. A primeira versão [por mais espetacular] é geralmente a favorita.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

16 de Maio

Línguas


Abdullaeva Behruz [dizem] falava 7.777 línguas [a estimativa patina dos 11.112 do eufórico amador-de-heróis historiador Java Kharlilah aos sóbrios 444 do seu contemporâneo (e rival) o materialista Iusya Marzhaffar]. Menos interessante é a primeira fase de seu aprendizado, a qual [segundo as histórias de esquina] tomou meio século e 88 dias e o fez aprender desde os costumeiros grego-dórico, latim-etrusco e sânscrito [na variedade cuneiforme] a línguas realmente estranhas como o Samovedanta, a qual [dizem] possuía apenas uma palavra [com 59.997 conotações diferentes] até o Morrábico [que não possuiria nenhuma, ou ao menos nenhuma isolada].

A segunda [e plenamente misteriosa] fase de sua vida teria sido uma consequência [perfeitamente lógica e totalmente inesperada] da primeira: tendo aprendido as línguas dos homens [e por nada ter a fazer tendo pensado seriamente em dar cabo de sua vida] o linguista na margem do lago Sarygamish ouviu uma conversa a qual entendia [compreensivelmente falavam de alpiste]. Abdullaeva descobriu então que compreendia a linguagem dos pássaros. E das cobras e dos ratos, e até das folhas secas.

As pessoas o cercavam. Perguntavam do que falavam os bichos. Abdullaeva terminava por se irritar e berrava que Os animais são tão vulgares quanto vocês, o que em nada ajudava sua popularidade. Quanto ao seu talento, nunca o passou para ninguém. É inútil entender essas conversas tolas – dizia ele, e sua popularidade afundava mais um ponto.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

15 de Maio

O Excessivo


Husan Shahzoda enfiou o quepe tridentado [símbolo do SubCalifa] na própria cabeça careca na data de hoje em 624 da Hégira [1227 dos hereges] e iniciou o fim da Era do Vácuo  na história amhitariana. [O historiador Iusya Marzhaffar inventou tal nome (ao qual não falta dose de absurdo) para o período que antecedeu a Idade Média de Amhitar].

Husan passou para a História como Ekhslin-al-Charokstan [aquele que foi excessivamente cruel] e a injustiça tolda esse apelido, segundo Iusya. Pois Husan não foi excessivamente cruel: foi excessivo em tudo. Quando jovem decidiu ser o jejum o meio para a divindade e ficou 77 dias e 7 horas sem encostar em um grão de cevada. Depois considerou que a vida consistia em passar bem e se divertir e [diz a lenda, que curiosamente não é contestada] encontrou-se com um rebanho de 33 carneiros e ovelhas, o qual encontrou nele o seu triste [e churrascoso] fim.

Casto, passava onze meses sem pensar em mulher. Promíscuo, fazia orgias com exatas 95 concubinas [sem que ninguém conseguisse precisar a razão de tal número]. Revoltado com as injustiças do mundo, cortava a cabeça de quem quer que possuísse mais de 50 moedas. Generoso, doava palácios ao primeiro mendigo.

Com tais excessos, seu assassinato com um carneiro envenenado [não isento de certo mistério] causou tanto um carnaval quanto sete suicídios rituais, de pessoas que queriam acompanhar seu herói [ou malfeitor] no céu ou inferno, tanto fazia.

terça-feira, 14 de maio de 2013

14 de Maio


O Primeiro Turista
E René Caillié conseguiu afinal, e triplamente: foi o sétimo ocidental [dizem] a conhecer o Reino de Amhitar e ganhou o nome de uma canhoneira fluvial na Troisième République [utilizada para guerras coloniais]. [Sua terceira proeza, a de primeiro visitante do Mali e do Níger, tem sido não pouco contestada pois, ao contrário de Amhitar (lugar sólido) há dúvidas quanto à existência de tais supostos acidentes geográficos].
Um quarto feito obteve menos divulgação embora [talvez] maior importância: os sérios [e um tanto chatos] viajantes da época [os Saint-Hilaire, Martius e Humboldt da vida e da morte] moviam-se carregados de malas, carregadores, pincéis, diários de viagem, livros de velhos geógrafos árabes que ninguém mais lia, diplomas de História Natural nas [raríssimas] universidades da época e uma erudição irritante.
O jovem francês [ao contrário] saberia explicar menos que qualquer um por que saiu de sua terra e foi se meter no mundo alheio. Ao contrário dos sóbrios sábios que o precederam não queria salvar o mundo [nem mesmo se interessava muito por ele]. Glutão inveterado [não necessariamente de alimento] o rapaz queria comer: sensações, sabores, odores, paisagens, e mais que tudo queria a sensação de Ei, vejam só, eu estou aqui! - e ir embora.
Por sua doce [alguns diriam estúpida] irresponsabilidade, não deixou de ter seu galardão: o dia de hoje [dia em que em 1821 cruzou as fronteiras amhitarianas] foi declarado Dia do Turista.  

segunda-feira, 13 de maio de 2013

13 de Maio

Os 13 avatares da mulher de branco
A nuvem de branco [dizem] apareceu 13 vezes e subiu de volta ao Céu por sete vezes [sendo tal matemática por muitos considerada discutível. Dizem eles ser pouco verossímil (além de desnecessário)que um ser celeste resolvesse ficar seis vezes neste mundo].
A pouca precisão desta aparição divina [ou quase], a qual varia desde o ano 209 antes a 422 após a Hégira [ou de 413 a 1031 dos hereges] aumentou [surpreendentemente] o seu prestígio [em todas as eras]. Os missionários salesianos que gozaram de [efêmero] prestígio no país lá pelo ano 1850 afirmaram ser ela a Mãe de Deus, pois Deus, o Pai de Todos, tem mãe [sendo o pai inclusive da própria, e esta contradição explicaria (segundo não poucos) o pequeno sucesso da religião de Roma em Amhitar]. Os budistas [havia um mosteiro (não muito bem-sucedido) deles na beira ocidental do lago Balkash] afirmaram ser ela uma manifestação dos avatares do Buda. Os adeptos do profeta [inevitavelmente] disseram ser a aparição um sinal da fúria deste [não de Alá, pois o Misericordioso não se manifesta].
O grupo agnóstico Razão Total Humana [apesar de censurado pelo poder proletário sob a acusação de reformista] conseguiu emplacar o dia de hoje como Jornada do Ateísmo Libertador em 1939. De maneira não muito inesperada, a população a inverteu para dia da lembrança das aparições, o que [segundo não poucos] é mais uma prova [desta vez por quase voto popular] da existência da divindade.

domingo, 12 de maio de 2013

12 de Maio


Formas de escolher governantes
Ruthinna olhos negros e cabelos idem na cintura [princesa filha do falecido Sherif amhitariano em princípios de 1715] veio a público no dia de hoje para defender o método de defesa do novo governante. Começou por analisar os existentes. Escolher um chefe por habilidades na guerra era estúpido disse ela, pois a força era apenas um acidente que decorre da fraqueza dos outros. A sucessão por hereditariedade não tinha sentido, pois tanto os tolos como os sábios têm filhos e a sabedoria não se transmite pela carne. Pedir indicação aos sacerdotes seria ainda pior, pois a dura experiência ensina que os homens de deus são muitas vezes os piores.
Restava o método tradicional: sem tremer um lábio [e sua seriedade a sufocar risos] fez cair o casaco e [vestindo apenas um perfume de cânfora] sentou-se ao trono [que era o corpo do candidato]. O teste era simples e eficaz e se baseava no número sagrado 7: o candidato que primeiro erguesse eficazmente sua coragem masculina 7 vezes seria o novo Sherif. Quanto aos candidatos falhantes, o cutelo do carrasco e o Reino de Alá os esperavam [inevitavelmente os candidatos eram poucos].
Ninguém fazia fé no jovem carreteiro Sherzod Mlavaz até que sua coragem se tornou líquida pela sétima vez. Ele e Ruthinna reinaram por 33 anos e [ao que se sabe] com justiça. Depois deles tal método foi considerado bárbaro e retornou-se ao costume de sucessão familiar, com o rotineiro envenenamento dos pretendentes pelos tios.

sábado, 11 de maio de 2013

11 de Maio


Olvidável Pioneiro do Ar
Amhitar [inevitavelmente] participa da corrida sobre qual país deu a luz àquele que conseguiu fazer uma engenhoca fumegante sustentar-se no ar antes de estatelar-se [de maneira mais ou menos voluntária] no chão. Certo longínquo [e voluntariamente pequeno país que se autodetesta] também candidata um certo Santos-alguma-coisa [parece que Dumont] [há também uns tais Irmãos Wright, dizem].
Se houvesse alguma ordem transcendental no mundo [sendo discutível que haja] Yuliya Sunnat [o candidato amhitariano] seria O Pioneiro da Aviação. Não por uma [sempre discutível] precedência temporal, mas por características muito comuns na raça humana que os outros candidatos [estranhamente] parecem não ter.
Seu aparelho ao qual deu o [estúpido] nome de Chinelo II decolou hoje em 1901 de um campo de areia nas margens do Syr-Daria, tentou atravessar o rio, não conseguiu, voltou, e pousou quase de faca [de ponta de asa] de onde partira.
Até aí nada de mais [o tal Santos e os Wright fizeram coisa parecida]. A originalidade de Yuliya está em que desceu em terra, arregalou os olhos, abriu o choro, saiu correndo para casa e gritando por mamãe [sendo não de todo improvável que manchou as calças e se meteu debaixo da cama, como dizem]. Nunca mais tirou os pés do bom e sólido chão.
Por três décadas se discutiu se Amhitar deveria reivindicar o Pioneiro Da Aviação ou O Mais Humano Dos Aviadores. Venceu a primeira hipótese, em decisão talvez não de todo feliz.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

10 de Maio

Clássicos aborrecimentos


O [relativamente pequeno] interesse pelos imortais da literatura em Amhitar tem sido atribuído [não sem certa injustiça] a um homem só. Akrom Sardor [velhinho, sorriso e pince-nez] publicou hoje em 1871 as suas Confissões de um Mestre-Escola, mais conhecidas pelo subtítulo Yuduurhmar-al-Aksuraathim, geralmente traduzido em línguas ocidentais como As memoráveis obras não são por demais interessantes. Uma tradução menos cavalheiresca porém mais real [dizem] é: Os Clássicos São Um Saco!

Não pede licença: Conhece o leitor aquela passagem na qual Ulisses chega numa ilha, mata todos os homens de lá e divide as mulheres e crianças como escravos entre seus soldados e é louvado por sua justiça?  Esse Homero era um sádico! E o Cícero, e esses advogados romanos chatos! Aprender latim para ler uma xaropada dessas? E aquele Agostinho, moralistão sádico defendendo os crimes de sua igreja? Pior só o tal Santo Tomás, outro cínico. E Aristóteles! Existe alguém que escreva de maneira mais aborrecida? E as tragédias gregas? Antígona abraçada ao cadáver fedentino do irmão, rárá! Que lindo! E o chato carola do Pascal! Um trapo! Este livro, caro leitor, visa a libertá-lo de ler esses sádicos aborrecidos, os clássicos!

Causador de duplos sentimentos, os intelectuais de Amhitar em geral trombeteiam que estava errado o professor [embora alguns doses de vinho os façam confessar que Cícero e os outros são veramente insuportáveis (ou um saco, como diz a tradução)].

quinta-feira, 9 de maio de 2013

09 de Maio


O dia da Imarcescível Vitória dos Povos Livres na Grande Guerra Patriótica
Quis o Destino [mas o Destino não quer nada] que o Herói de Amhitar fosse o baixinho, gordote, frouxo e puxador de uma perna Aleksiei Ilianovitch Bolkhonski [na verdade Alimova Fehruz (sendo assim que era conhecido fora dos comunicados da agência de notícias soviética Tass)].
Naquele 9 de maio de 1945 Stalin tinha dois problemas – o primeiro era como se manter no cargo [o problema de todos os tiranos e líderes democráticos] e o segundo era como parecer a todos os seus povos que a vitória pertencia a cada um deles [problema que, no fundo, recaía no primeiro]. Um censo apontara 160 nacionalidades, religiões e povos no país e todos tinham de estar presentes na queda do Reichstag em Berlim.
Um grande esforço da NKVD conseguira reunir 159 – faltava alguém de Amhitar. Stalin berrou para o Marechal Jukov que berrou para Timoshenko que berrou de volta e a batata quente caiu para os escalões inferiores, que descascando as mesmas na cozinha da 3a companhia do 435o batalhão da 769a divisão encontrou Alimova [as histórias de que se escondeu debaixo da cama acabaram por cair no descrédito, de tão contestadas pela imprensa patriótica].
No grupo [na verdade uma multidão] que sobraçando a bandeira vermelha invadiu a sede hitleriana consta [ao final] um baixinho. Tropeçou no casaco [essa parte inexplicavelmente não foi cortada da filmagem oficial e sempre causa alguns risos].

quarta-feira, 8 de maio de 2013

08 de Maio


Cabelos soltos ao vento
A vida que Dilafruz Shahmat criou para si teve seu segundo começo hoje [sendo o primeiro o banal dia de seu nascimento]. Dezoito anos [cabelos ao vento] bigode encerado de gomalina [buquê de gerânios] ajoelhou-se ao pé da amada [ os mais estonteantes negros olhos do universo]. O pai dela o expulsou – a moça, obrigada, casou com um rico a quem odiava.
Shahmat [a lua cheia como testemunha] jurou voltar famoso, e a jovem [fraca e inconstante] arrepender-se-ia de seu ato. Foi embora [navegou] foi sequestrado por piratas [tornou-se chefe deles] lutou em guerras [foi condecorado como herói] fez-se alpinista [subiu os sete montes de Atlântis] conheceu Napoleão [tornou-se seu lugar-tenente].
Voltou rico e famoso e encontrou um túmulo: sua amada, arrependida de de não tê-lo seguido, morrera de desgosto [e ainda regurgitante de pureza]. De que adiantam as riquezas e a fama, sem o verdadeiro amor? - pensou a chorar na tumba. Olhou do lado: surgira um exemplar da Histoire da la Révolution Française, de Jules Michelet.
Sem o amor nada mais valia a não ser o recolhimento e o estudo. Doou seu dinheiro aos pobres, mergulhou em manuscritos velhos e escreveu 77 livros sobre a história de Amhitar. Em homenagem ao mestre ele não era mais Shahmat, mas Dilafruz Michelet, o mais romântico dos historiadores.
Essa é a história que o escritor Dilafruz criou para si. Outros dizem que ele foi um tímido adolescente ledor, e que nunca teve namorada [mas a inveja existe].

terça-feira, 7 de maio de 2013

07 de Maio


A Dupla
Uma versão [provavelmente apócrifa] afirma que a furiosa ensaísta Shalina Kharinaat e a doce poetisa Iroshka Maruf [apesar de sua incompatibilidade em tudo o mais] seriam na verdade gêmeas, separadas [de forma talvez não acidental] na maternidade de Shamarkhaant. [O epíteto de Furiosa se deve mais a seus (não poucos) inimigos literários]. 
No mesmo ano [na verdade no mesmo dia] em que Iroshka publicava o seu Gatinhos de Doce Porcelana Shahlina [em uma taverna frequentada pelos sete únicos anarquistas de Amhitar da época] lançava no dia de hoje em 1898 [em uma brochura anarquisticamente sem capa] o seu Al-Ghurinahtt-el-Kabhutiir [geralmente traduzido como O Poder Invencível da Vagina Alarmante].
A  menção da quinta palavra do título na sociedade amhitariana da época [ou em qualquer sociedade em qualquer época] seria suficiente para  tempestades de escândalo, e mais ainda reforçada por capítulos como No Princípio era a Vagina [e a Vagina era Deus] ou Da Prova cabal da superioridade das vaginas sobre seu ridículo contraparte. A autora propunha uma sociedade na qual os homens seriam escravos, não só sexuais como econômicos.
Iroshka Maruf lhe enviou o bilhete Eu também sou você apesar e o significado desta linha varia desde que a boa moça na verdade invejava a rebelde, até a de que o bem e mal podem até simpatizar, sem deixar de ser opostos. Esta última versão, mais conveniente para  as famílias de Amhitar, acabou sendo a mais difundida.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

06 de Maio

Quando Ele veio, ou não


Alexandre o Grande invadiu Amhitar no dia de hoje [nunca invadiu e esta celebração é estúpida ­– diz outra corrente. Um grupo minoritário afirma que não foi uma só invasão, mas sete, e nenhuma a 6 de maio]. Bebeu e elogiou a água do mar de Aral [ou fez três caretas e disse ser pior que os esgotos de Atenas – afirma um grupo] [segundo outros, até quis beber mas seu cavalo corcoveou assustado com o excesso de sal – e para não se desmoralizar o conquistador gritou ter mudado de ideia].

Realizou os ritos do amor em sua tenda listrada de amarelo e rosa com sete belíssimas morenas princesas que lhe foram entregues como tributo [não realizou nada porque nem era chegado a isso, diz uma minoria] [outros dizem que não eram princesas, nem belíssimas, e nem morenas, e sim mulheres de aluguel das mais feias como sinal de desprezo pelos vencidos, que nem bonitas fêmeas produziriam] [outros discutem ser a tenda não listrada mas escarlate].

Louvou a sabedoria dos anciãos de Amhitar [ou considerou-os um bando de imbecis] e declarou nunca ter visto santuários mais belos [ou afirmou não servirem nem para estábulo].

Deixou o país em glória militar pela estrada de Karakorum [ou saiu uma picada estreita afligido por uma disenteria que o fez deixar ridiculamente lembranças a cada cem metros – afirmam outros]. Ou nunca saiu [dizem] pois a água que lhe deram era envenenada, e seus generais a partir de então o substituíram por um impostor.

domingo, 5 de maio de 2013

05 de Maio

Delicados
Hoje em 1898 [em uma ruptura que só mais tarde seria reconhecida como tal] a poetisa Iroshka Maruf publicou em um bazar de gatos de porcelana o Dicionário de Delicadezas. [Tudo se fazia significativo nessa obra, desde o lugar de lançamento (de maneira alguma fortuito) até o número de exemplares (222 que, pela grande procura, a autora permitiu que fosse aumentado para 2222, pois o número 2 (claro água) era seu número favorito.]

Mesmo o ateu Serguei Kovinev [que não pode ser considerado fã de uma poetisa intimista] tonitroa que assassinatos, julgamentos, inundações, guerras [e até sete Arnmegedons destruidores da Galáxia] porejavam a literatura amhitariana, a qual se orgulhava de ser Uma Literatura de Grandes Coisas. Esta jovem que laborava joias de palavras sobre um pingo de chuva nadando em um copo d´água [um de seus poemas mais declamados] ou cartas a um estranho que me ama sem eu nunca tê-lo conhecido trouxe a arte das palavras ao rés do chão, ao miolo da vida, ao pote de barro dos qual são feitas a coisas.

Detestada pelos anarquistas e pela polícia do Czar [que desconfiava dela algo que nem sabia definir] a escritora foi canonizada pela república soviética [traidora] do Uzbequistão [como símbolo de resistência pátria ao invasor inimigo] e pelos neoliberais dos anos 1990 [como mártir da liberdade do pensamento, irmã da liberdade de abrir shopping-centers]. Ignora-se até que ponto esses seus tardios fãs leram suas poesias sobre bolas de lã.

sábado, 4 de maio de 2013

04 de Maio

O tempo em que o barbicha foi feliz


Era meia-noite quando Leon, depois de condenar 17 contrarrevolucionários à morte e completar três laudas de Uma análise dialética do futuro da mais-valia espreguiçou-se, levantou de sua escrivaninha no trem blindado que servia de comando ao Exército Vermelho e saiu para tomar ar. [A guerra civil afinal caminhava bem – apenas nove mil e novecentos mortos nos últimos dias, uma bagatela].

Distraído pela emoção de estar construindo a redenção do mundo e pela neblina, perdeu-se e quase bateu a testa no Velho Cachorrão [o mais sujo dos bordéis de Amhitar e do mundo].

Três bêbados o convidaram a uma mesa. Leon frio e fome não tinha rublos. Eles pagaram o pão e a vodca. 

Mas exigiram:

- Cante.

O orgulho proletário bateu firme em Leon. O alcoolismo é uma desgraça do povo oprimido.

Não se deixaram convencer. Canta ou nada.

Leon Trotsky engoliu o orgulho [a fome deva pontadas]. Grasnou:

- Figaro, Figaro, Figarooo...

Não gostaram. Fechou os olhos, pediu para Marx perdoá-lo:

- Anushka/ a minha puta/ tinha quatro tetas/ sete tetas/ nove tetas...

Trabalhadoras da noite e bêbados riram. Leon comeu, bebeu, gargalhou, moças sentaram nos seu colo. Os comissários da Artilharia Vermelha que o encontraram lhe sentiram o bafo de álcool.

Depois, numa noite em 1940, numa casa fortificada no México, Leon Trotsky escreveria: somente um dia, naquele dia 4 de maio de 1920, posso dizer que fui realmente feliz.

Vinte e quatro horas depois morreu assassinado.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

03 de Maio

Inexistência primeira


A tese [não pouco contestada] da inexistência de Amhitar foi arguida 3 vezes [dizem]. A terceira [e mais perigosa] se deu quando a barbicha e o pince-nez de Leon Trotsky intentaram a incorporação do país à sua Revolução Proletária Mundial Redentora.

Malgrado a sua insidiosidade, a tese do barbicha se trata [na verdade] de um requentamento das ideias contidas em dois de cinco rolos de pergaminho rigorosamente guardados em potes de barro e descobertos na demolição de um lupanar para a construção da Fábrica de Arados Proletários e Camponeses em União  na província de Jizzack em 3 de maio de 1929. Segundo tais pergaminhos [vertidos no protodialeto Bakhmar], Amhitar não se trata [como os outros] de um lugar físico, com fronteiras, rios e soldados, mas de um estado de espírito. Quando pressionado por essa mistura de monotonia e tensão que se chama [por algum motivo] de mundo real, cada homem [e todos eles] têm seu lugar-de-refúgio, seu Amhitar próprio [seja ele a bebida, as moças de aluguel ou Amhitar mesmo].

O fato de os outros três jarros conterem descrições de posições eróticas tem sido alegado desde sempre pelos adversários como argumento contra sóbrias teses. A atual Academia [Pós-Moderna] do Passado Inexistente [fundada em 1989] afirma [de maneira previsivel] que as sensualidades formam a melhor prova que tais pergaminhos são autênticos, pois [segundo eles] só a indecência nos salvará [ele mesmos se perguntam de quê].

quinta-feira, 2 de maio de 2013

02 de Maio

Comeres discordantes


A Culinária amhitariana nasceu [oficialmente e de maneira um tanto suspeita] de duas formas independentes              que [presumivelmente por coincidência] aconteceram no mesmo ano e dia, 1907 a 2 de maio [em dois bazares lado-a-lado em Shkmarkhant] quando Miss Shahnoza Fehruz e a Célula Anarquista Abaixo os Deuses! lançaram cada um seus livros, ambos com o título Relato Verdadeiro da Mesa Amhitariana e as semelhanças param por aí. Shahnoza [estonteante de morenice aos vinte e dois] e [dizem] amante de um oficial russo [e que nada tinha da senhora de meia-idade típica dos livros de receita] derramou no compêndio gafanhotos assados, rãs vermelhas ao molho de iaque e caranguejos de cinco patas grelhados com lacraias torradas típicos [segundo ela] do de-comer dos antigos.

Exotismo para alienados! – diziam os anarquistas. Seu livro começava decepcionantemente com 17 páginas em branco [homenagem à fome do povo, que nada come - diziam eles (embora tais boas intenções tenham sido criticadas como falta de assunto)]. Seguiam-se receitas tão monótonas que pareciam uma acolhida ao suicídio em massa – dizia Shahnoza.

O debate refletia a política – aqueles que queriam a conciliação com o domínio russo elegeram a garota como sua favorita, enquanto os radicais favoreciam qualquer radicalismo, desde que contrário ao Czar. Folhetins tentaram atribuir a discordância ao amor frustrado de um anarquista pela morena mas as coisas não são sempre tão românticas.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

01 de Maio


Septienista

- Já que não consigo mudar a mim mesmo, vou mudar o mundo.

Foi o que disse Aynur Zafar quando saiu do Hospício de Shmaerkhaant no dia de hoje em 1827 com duas malas de papelão prensado e uma observação ZK no seu prontuário [abreviação de Zhirklin-in-Kharobouth, que no dialeto Bhakhmar padrão significa Não Curado].

O maior dos filósofos [ao menos para seus 7 adeptos] de Amhitar instalou-se então em um cubículo e se dispôs a contar a História de Tudo [sendo esse o título de sua obra principal, a qual livreiros temerosos da reação dos compradores mudaram para o pouco menos pretensioso Completo Compêndio de Filosofia Geral]. Tal obra [disseram os críticos de Delhi a Jacarta] impressionava por sua firmeza em anunciar absurdos. A ideia de que havia uma fonte de perfeição no mundo, que esta fonte não era o que se chamava de deus, que esse pretenso fluxo passava pela humanidade e especialmente pelos adeptos da filosofia aynariana [ou septienista, como ele a chamava] era por demais pueril para ser real.

O fato de que cada ensaio do mestre tinha 7 partes, cada parte 7 capítulos, cada capítulo 7 seções, cada seção 7 parágrafos, cada parágrafo 7 períodos e cada período 7 palavras pouco contribuiu para a reputação acerca de sua estado mental. Críticos dizem que é por isso que a filosofia do mestre nunca teve mais de 7 simpatizantes [mas isso não é verdade: em 7 vezes que foram contados, o número de adeptos chegou a 9].