quarta-feira, 31 de julho de 2013

31 de julho

Dia de repúdio ao infame tratado

O nome Tratado da Diversidade dos Bárbaros se trata na verdade de uma péssima tradução de Ullihfaz-al-Guhayonoz, que poderia ser escrito como Da Redondez de uns e da Aspereza de Outros. [O nome canônico se impôs apesar da indignação do linguista Abdullaeva Behruz (o homem que sabia 7.777  línguas – embora esse número seja /com justiça/ controverso)].

Trata-se de 888 rolos de pergaminho [alguns pouco mais que frangalhos] contendo na maior parte das vezes riscos que se unem em desenhos e que por sua vez se unem em mapas. [Estudos não-conclusivos da Universidade de Alma-Ata (com toda a reserva que merecem as pesquisas dos descendentes dos inimigos Kazaks) estabelecem sua data entre os anos 57 e 349 dos hereges, embora não sejam poucos os que creem que se trata de uma farsa recente].

A razão da polêmica não se trata nem do assunto dos pergaminhos – na sua parte substantiva eles descrevem [de forma algo monótona e não de todo verossímil] os Bárbaros além do Deserto do Norte: quais tribos eram delicadas, quais cuspiam no prato; quais eram mais baixos que os joelhos dos mais altos; quais tinham três buracos no nariz [incrivelmente existe uma corrente evolucionista que crê na existência de tal horda, hoje extinta].

No final o anônimo autor afirma que os mais baixos entre os baixos, os mais sujos entre os sujos, são esse novo povo do Sul, os amhitarianos. Esta frase garante sua pequena popularidade [e sua anticelebração hoje].

terça-feira, 30 de julho de 2013

30 de julho

A Inimiga da família

Discute-se há nove décadas com absoluta paixão [e completa irrelevância] o número de amantes que teve Odina Maruf. [A expressão entre colchetes (não totalmente isenta de moralismo) pertence ao geógrafo Serguei Kovinev, cujo testemunho teria uma importância não pequena em sua permanência na história].

Odina [surpreendentemente prima em terceiro grau da doce e caseira poetisa Iroshka Maruf] assinou um decreto Abolindo a família, extinguindo essas prisões chamadas casas, e obrigando todos a comer e morar em abrigos coletivos. Do brevíssimo governo do General Chavkat foi a única ministra que fez algo que sobressaísse [o general ao empalmar o poder em um golpe de Estado nomeou-a Ministra dos Bons Costumes – talvez com propósitos bem diversos dos dela].

Desnecessário dizer que o decreto redundou em fracasso rotundo. [Talvez por causa dos apenas 19 dias de governo do general]. Ficaram no entanto os papéis do tal decreto – incensados por não poucos grupos feministas e pós-modernos.

Quedou também uma fama de um misto de Messalina e Cleópatra modernas. Nada mais falso – argumentou o inevitável Serguei Kovinev em uma palestra na Academia Soviético-Proletária hoje em 1944 . Eu a vi - eu era um adolescente magrinho e Odina um par de olhos verdes e lábios cor de rosa que clamavam por felicidade.

Seu testemunho, por comovente que seja, é empanando por suspeitas de paixonite jovem, que se traduziriam no título de sua palestra: Bela e Sábia Odina, eu a conheci.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

29 de julho

Origens

O rio Syr Daria teria 31.999 nascentes - o mesmo número [dizem] da quantidade de estudos e lendas sobre quantas nascentes o rio Syr Daria teria. [Um relatório não de todo incontestado da Universidade de Dacca publicado hoje em 1967 estabeleceu o número (tanto de polêmicas como de nascentes) em 17.001 – ainda assim vastíssimo].

A quantidade de fiozinhos d´água que descem das montanhas do Quirguistão e do Planalto do Pamir tem confundido os exploradores e geógrafos dos últimos dezessete séculos. E de quebra tem possibilitado interpretações puxando para o misticismo. O monge cristão Gelasiminius registrou a de que as nascentes do grande rio seriam inatingíveis porque no cocuruto das suas altíssimas montanhas estaria na verdade situado o Paraíso – com direito a pegadas de Adão e Eva. [A Escola Materialista de fins do século XIX esmigalhou essa poética explicação ao lembrar que ela se baseia na lenda de que o rio do Paraíso cresce na seca e desce na cheia, e isso acontece com o Syr Daria não por alguma ação divina – mas por que o ciclo de águas de sua nascente é diferente do daquele de sua foz].

A explicação mais corrente [e menos interessante] da indefinição de onde nasce o grande rio argumenta que se trata de problema linguístico: o que é nascente, o que é olho d´água, o que é riacho. Com quantas gotas de faz cada um deles. Como toda controvérsia léxica [argumentam os pessimistas] também esta jamais terá fim – ou terá 31.999 fins.

domingo, 28 de julho de 2013

28 de julho

O Precursor

Como o rei Salomão, o Xeque Muatthax teve Trezentas Concubinas. Correção: como dez Reis Salomões, o Xeque Muatthax teve Três Mil Concubinas. O número [embora quase que certamente exagerado] gerou anedotas [de gosto geralmente duvidoso] nesses últimos séculos [ainda mais durante o reinado de seu balofo e mole (dizem que em todos os sentidos) tataraneto o SemiSultão Dhoxrux].

Além de piadas, as conversas do populacho povoaram o anedotário nacional de explicações sobre como a insigne autoridade pôde suportar a pressão de três mil representantes do belo sexo [um número não desprezível delas de igualmente não desprezíveis juventude e beleza]. [As razões materialistas de que se tratava de um caso clássico de exploração das camponesas por um tirano feudal nunca foram populares por, além de desviarem o ponto central do problema, serem muito chatas].

As hipóteses se multiplicam desde as mais óbvias [o potentado teria a valiosa ajuda de viris escravos; longos anos se passavam até uma das felizardas voltar a ter seu dia de sorte de novo; um pacto (que depois cobraria seu preço) possibilitava a ele tais proezas] até as mais esdrúxulas [naves marcianas diariamente abduziam uma quantidade de moças, retornando-as depois de devido (e eficiente) serviço extraterrestre].

Uma última é que o Xeque todas as noites tomaria uma infusão sólida comprimida em forma esférica cor de céu, ou seja, uma pílula azul. Tal explicação é compreensivelmente espalhada por certo laboratório.

sábado, 27 de julho de 2013

27 de Julho


O Britânico

John Robinson cruzou o portão sul-sudoeste da capital de Amhitar hoje em 1862 e nem mesmo este cruzar foi isento de controvérsia, pois o Sir [discutível título] ao olhar as franjas decoradas de serpentes teria apertado o monóculo e dito rather interesting em tom que podia ser tanto interesse quanto ironia [tom esse que afinal perpassou toda a sua viagem].

Um chinesinho chamado Nang Lin o acompanhava [e traduzia suas anedotas (as quais geralmente só o britishman achava engraçadas)] em péssimo dialeto Bakhmar. Nas suas memórias [publicadas pela Sotheby´s and Sons de Londres] o inglês revelou como aquele pequeno povo [era assim que se referia aos amhitarianos e a qualquer massa humana não-inglesa] ria quando ele puxava o lenço e limpava o nariz em público - achavam que era alguma saudação. Ou quando montou uma pequena cadeira dobrável que sempre trazia consigo e se sentou – pensaram que algum problema o impedia de se sentar no chão em tapetes.

Circulou com sua casaca [de duas pontas semelhantes a rabos que quase tocavam o solo] sua cartola e seus pacotinhos de chá por meio território, torceu o nariz, disse Very Good e foi embora.

As versões sobre Mr. Robinson variam desde ser ele um espia a preparar uma invasão até Jack O Estripador. Dizem também que se chamava na verdade James Ryder, era head attendant do Hotel Cosmopolitan de Londres e um roubo frustrado de joias o obrigou a fugir. Este versão [pouco lisonjeira que seja] é a prevalecente.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

26 de julho

Lendas do Monge

Diz a lenda [e isto é só uma lenda] que Rasputin calcou com seus pés o chão de Amhitar. Saiu [de acordo com a lenda] de sua [talvez também lendária] aldeia natal de Pokrovskoie e se dispôs a ser um starets [um monge] e para isso andou. [Quando perguntavam o que era necessário para ser um starets ele respondia: bons pés].

Hoje em 1902 [a data é também parte da lenda] entrou em Shamaekhent pela Porta Oriental. [Já se havia convencido de que quanto maior o pecado mais valioso o perdão]. Acariciou crianças e penetrou rameiras, deu esmola a indigentes enfermos e engoliu tonéis de vodca, curou hemofílicos e corneou maridos. [Testemunhos (também lendários) e pretensamente razoáveis afirmam que o homem efetivamente possuía poderes paranormais, e tanto oficiais da polícia como belas moças sem namorado acabavam fazendo o que ele queria, mesmo que não tivessem a menor vontade disso vinte minutos antes].

Grigori Rasputin [continua a lenda] recusou a passagem do trem expresso que lhe ofereceram [o que só lhe aumentou a fama de santo]. Aceitou, no entanto, a caixa de vodca de Novosibirsk [o que em nada lhe afetou a reputação, talvez por causa dos supostos poderes paranormais].

Grigori Yefimovich Rasputin ao cruzar a fronteira não sussurrou uma prece, como conviria a um monge. Olhou para trás, olhos injetados, e despejou uma de suas famosas gargalhadas [e esta parte, por mais que não tenha testemunhas, pode-se estar certo que não é lenda].

quinta-feira, 25 de julho de 2013

25 de julho

Missivas de algo

Quanto a Dilya Elmurod, quis esquecer tudo de cartas, meteu-se a estudar e assumiu hoje em 1931 o cargo de professora de filosofia da Universidade de Shamaarkhaant [sendo a primeira mulher a fazê-lo] e tal data [longe de proporcionar discursos e promessas de promoção social das mulheres] gera arrepios apenas. [A entrada do dia no calendário oficial amhitariano se deve ao grupo gótico Vampiros Ainda que Nunca Mais, que a arrancou em 1990, na véspera do afundamento do governo soviético].

Miss Dilya: não se pode afirmar que fosse normal – seu avô [dizem] era filho do Diabo e como este [ainda segundo a lenda] possuía os ossos ocos. Seu tio acreditava serem os pesadelos uns insetos invisíveis e montava armadilhas para capturá-los. Ela mesma aos quinze anos tomou o hábito de escrever cartas, que fechava, selava e enviava para si mesma [e as esperava com ansiedade de apaixonada]. 999 cartas monotonamente voltaram com as mesmas letras que ela havia escrito. No milésima, veio a frase Está sozinha, Dilya, e na vez seguinte a mesma Está sozinha, Dilya, e depois a mesma e assim por mais 999, e sumiram.

As explicações variam desde as esperáveis hipóteses paranormais e ufológicas [mudando o planeta envolvido desde Júpiter a Alfa Centauro], a tentativas de um vizinho adolescente [em outras versões é um homem casado] querendo seu amor. Fora as quase canônicas, de que a moça seria em verdade uma embusteira que escrevia ela mesma aquelas frases.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

24 de julho

Fatos possíveis

As 47 mil versões da batalha de Zhongor tiveram origem em três estrofes de poema do cronista do século XII NilufarAl-Wazahari [seu sobrinho Abdul Al-Wazahari (demonstrando pequeno amor familial) contestou tal número como fantasioso exagero]. Retirando-se as [não tão poucas] versões que contestam a existência da própria batalha, o dia de hoje [do ano 888 dos hereges] como sua data é talvez o único ponto unânime, sendo tudo o mais discutível.

Em uma das versões os invasores Kazaks fugiram pelos três passos das montanhas, sendo em dois deles massacrados. Em outra, escaparam para o deserto e 99 em cada 100 deles pereceu de sede. Em outra não fugiram – e a derrota das forças patrióticas foi suavizada pela coragem demonstrada, que inspirou outros a lutar pela liberdade futura.

As contradições também pululam a nível micro – uma das histórias mais populares mostra Donyhor al-Temurbek [em um de seus múltiplos avatares] tocando sua trompa e partindo para o ataque no alto de uma colina. Em outra toca um tambor. Em uma terceira não toca nada, pois a ação noturna exige silêncio absoluto. Na quarta não toca nada - pela boa razão de que não esteve na batalha, sendo outros os heróis nacionais presentes.

Alguém ousou afirmar que a quantidade de bravatas ditas pelos sobreviventes da refrega [e contadas a filhos e vizinhos, exageradas e por estes desdobradas] deram origem ao número canônico de versões. E esta versão tornou-se a de número 47.001.

terça-feira, 23 de julho de 2013

23 de julho

O de longe

Os 16 testemunhos que chegaram até hoje atestam de forma [quase] unânime que Ele veio de longe. Uma carreta da rota da seda veio e partiu e deixou [compreensivelmente] dois fardos de finíssima seda verde e um Homem. [As barbas brancas até a barriga não deixavam de impor respeito]. Trazia três arcas – uma delas com pedaços de pau pregados em perpendicular, a outra com roupas que deixavam claro que ele, se era, não fora um qualquer, e [segundo apenas dois dos testemunhos quase certamente fantasiosos] uma terceira com gafanhotos fritos, o seu lanche.

Abriu a boca [uma pequena multidão em semicírculo] e berrou: Maria não é Mãe de Deus! É apenas Mãe de Jesus! Com isso detonou uma peroração que dar-lhe o título de Theotokos (Mãe de Deus) era uma concessão ao paganismo, uma imitação das famílias dos falsos Zeuses.

Ninguém entendeu nada [apesar de um rapazinho ao seu lado que traduzia tudo para o protodialeto Bakhmar]. Furioso com a indiferença rogou nove pragas sobre aquela gente increia e partiu com suas arcas - metade dos testemunhos diz que para o Oriente, o resto para o lado oposto.

Uma dúzia de séculos se passou antes que os jesuítas [que só se referiam a ele fazendo o sinal-da-cruz] sussurrassem que aquele era Nestório, um amaldiçoado herético, e que foi a Mãe de Deus que o impediu de converter a gente da terra de Amhitar [o que não adiantou muito, pois a verdadeira fé (supostamente a dos jesuítas) também não teve muito sucesso].

segunda-feira, 22 de julho de 2013

22 de julho

Mágica sem mais

A Magia em Amhitar não existe e se existisse seria a Monotonia condensada – a observação [não carente de injustiça] tem sido atribuída a tantos que geralmente se a considera anônima. Não se refere [na verdade] a toda a magia amhitariana mas apenas à das subseitas hegemônicas Khazyr.

Os incunábulos mágicos não repelem as asas de morcego, sopas de teia de aranha, suores de gato, pelos de narina de homem e lágrimas de virgem que populam outras tradições adivinhísticas & curandeiras. Apenas exigem [e nisso efetivamente concedem a certa monotonia] que tais métodos sejam explicitados em seus efeitos e provados por bruxas reunidas em comitê – ou seja [dizem não poucos críticos] pretendem uma magia científica.

Miraculosamente [e o advérbio não é bem colocado] certas mágicas são oficialmente aceitas – de alguma forma [ninguém sabe como] há uma relação entre a conformação entre as nuvens no céu das duas da manhã do mês dois do dia dois com o rosto do futuro marido das garotas nascidas 17 segundos depois do pôr do sol, assim como entre as manchas na cabeça dos gatos e a sorte no emprego.

Apesar disso [e lamentavelmente] a última adivinha da tradição Khazyr fechou sua tenda hoje em 1988. Sua filha [materialista e ateia] se tornou engenheira nuclear. Seu ceticismo sofreu um baque quando anos depois descobriu que a mãe anotara [muitos antes numa pele seca de sapo] a futura profissão da filha, e que esta detestaria misticismos.

domingo, 21 de julho de 2013

21 de julho

O peixe do Ministro

A indústria da pesca de Amhitar não tem futuro, e já que estamos no assunto, nem ela nem esse país - esta [menos que lisonjeira] afirmativa escreveu-a Serguei Yulyevitch, o Conde Witte, em furiosa [e cheia-de-solavancos] viagem ferroviária de volta a São Petersburgo na data de hoje em 1895.

O [macaco-velhíssimo] Ministro das Finanças do Czar Nicolau II escrevia a seu [jovem] soberano para relatar os sucessos [melhor talvez, os fracassos] de sua viagem de inspeção à economia amhitariana. [Acreditava o Ministro que as possessões territoriais, mais do que honra, têm de dar lucro. Nisso se separava do Czar e de 101 % de sua Corte]. Depois de examinar relatórios e cifras de aduana e convencer-se de que Amhitar nada poderia produzir de valor [nem mesmo com as mais altissonantes preces aos ícones da Igreja Ortodoxa] soube que Amhitar tinha o Syr-Daria e o Amur-Daria, e que poderia ao menos industrializar o peixe desses rios.

Esbarrou com dois dias de desculpas, cinco de bajulações ocas e três de folclore – os pescadores de Amhitar nada sabiam dos peixes, e nada podiam prever de seu comportamento, devido ao Khalimaat – o peixe de escamas douradas que engole os homens por demais ambiciosos e desrespeitosos da peixarada. O já empoeirado ministro considerou que isso era uma indireta contra ele e estrondou de volta ao trem. [O movimento ecologista tem recuperado esse episódio e o próprio Khalimaat como exemplo de luta pela natureza].

sábado, 20 de julho de 2013

20 de julho

O Dia Nacional de Repúdio a Amhitar a Imbecil

Desafortunadamente, do documentário Jornada pelo Turquestão Ocidental antes de seguir para a segunda montanha mais alta do Mundo [do audacioso explorador o Duque de Abruzzi] restaram apenas 7 minutos e meio, recolhidos [e juntados a outros filmes do Duque] pelo precioso portal Europeana.eu. Contava com 68 minutos, dos quais o mais controverso [o quadragésimo-quinto] se encontra oficialmente desaparecido.

Tal pedaço descrevia certo país de gente suja e plena de preguiça, só disposta ao roubo e à comilança... esta terra é Amhitar, a Imbecil.

Este pequeno trecho fez a multidão apedrejar [não sem injustiça] os três cinemas nos quais esse filme foi exposto [hoje em 1912]. Ondas de poemas de repúdio, quebra-quebras e ameaças de invadir a Itália sacudiram o país até que o governo do General Chavkat oficializou a data como estímulo ao fervor patriótico.

As acusações ao Duque têm variado desde ser um riquinho ocioso que desperdiça seu tempo em viagens pseudo-científicas até ser na verdade um espião fascista desejoso de colonizar o país [pois era primo de Vítor Emanuel II, o Rei que protegeu Mussolini]. A explicação mais racional é que o Duque perdeu o perfeito cavalheirismo que o caracterizava pois esperava de Amhitar grandes exotismos, como altas montanhas e cavernas de safiras púrpura. Como não viu nada disso, o calor e os mosquitos o fizeram perder a calma. Tal explicação [compreensivelmente] não tem tido grande sucesso.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

19 de julho

Rejeitadas profecias

As profecias de Amhitar não são sete mas [segundo a quase totalidade das teses sobre o assunto] novecentas e sessenta e sete [sem que este número (diluvianamente) maior represente qualquer honra adicional]. A [inevitável] corrente materialista preconiza que as adivinhações de suposta origem não-terrestre só podem ter algum mérito [isso se o tiverem] se forem [de alguma forma] cumpridas.

O ateu Serguei Kovinev  dedicou um [surpreendente] capítulo de seu tijolo Uma Introdução Dialético-Revolucionária à Formação do Território de Amhitar à questão das profecias [que, apesar de transparecer a ideologia do autor a cada vírgula] tem informações úteis. Tais profecias, longe de serem as xaropadas de velhos barbados [frequentemente com ridículos chifres de ouro – a observação é do geógrafo] a vomitar regras em pedaços de pedra, em Amhitar se constituem em tesouro de preciosos lugares comuns [o autor lista aforismos como Não se deve comer maçãs por onde passaram lagartas ou Um em cada sete anos é de tragédia como exemplo de bobagem que, de tão rasteira, acaba por expressar verdades (ou quase) e devem ser respeitadas].

Ao publicar esta obra hoje em 1936 o geógrafo do Regime passou a ser visto de maneira oficial como excessivamente sonhador [o que não deixava de ter certo perigo] e as profecias populares como Reflexos da opressão de classe, e cessarão com a futura sociedade socialista.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

18 de julho

Incomplet

Madina Sarvar não escreveu a maior obra literária da história de Amhitar [ou talvez a tenha escrito]. [A questão se foi o maior escritor amhitariano (com toda a amassadora ambiguidade da palavra Maior) já deixou de ser discutida, de tão inútil]. E não se trata apenas de tintas em papel – tendo atravessado a terceira década do século em plena atividade [ou maluquice], Madina quebrou lanças no Reino do Celuloide – e também deixou pedaços de fitas destinadas a ser longas metragens, mas cuja extensão mal as habilitava a serem curtas curtinhos.

De todos os atores culturais Madina talvez tenha sido o mais influenciado por sua vida – e não por suas dores amorosas ou convicções de política mas por seu método. Escrevia uma palavra por dia [às vezes meia]. No caso de filmes, três fotogramas bastavam. Esta sistemática, se estendia imensamente a duração do trabalho, permitia muitas obras ao mesmo tempo. [Afirmava a lenda que realizava ao mesmo tempo 97 projetos. Em um dos poucos casos em que as fofocas perdem para a realidade, ele fazia na verdade 333].

[Inevitavelmente] Madina Sarvar não deixou nenhuma obra completa [embora suas criações inconclusas ainda preencham caixas e caixas na Biblioteca Municipal de Shamarkhaat]. A família [ajudada pelos pós-modernos] insiste no epíteto O Precursor dos Tempos de Hoje, título rejeitado pelos intelectuais conservadores, que [não surpreendentemente] possuem fetiche por obras terminadas.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

17 de julho

Os sonhos

Baixo [mais até que nas fotos] bigode encerado e capote cinza, o Chefe entra no elevador. Arrasta a voz:

- Como vai o aço, camarada?

- Vai bem, Camarada Secretário-Geral. A produção aumentou 200 por cento.

-E o petróleo, camarada?

- Vai bem. A produção aumentou 300 por cento.

-E o algodão, camarada?

- Vai bem. A produção aumentou 400 por cento.

-E este elevador?

- É o mais moderno, Camarada Secretário-Geral. Um orgulho da Indústria Soviética.

O Chefe cofia o bigode. A voz arrasta o dobro:

- Este elevador está parado, camarada. Até você está me traindo.

E o camarada acordava, o suor a gelar o travesseiro.

Sete membros da cúpula do Partido alegaram [posteriormente e de forma não totalmente verossímil] ter tido o mesmo pesadelo na véspera da visita do Generalíssimo I. V. Stalin a Amhitar hoje em 1947. Iria inaugurar mais conquistas da Revolução Proletária e de quebra, ser o primeiro a passear no primeiro elevador do país, que constava do primeiro arranha-céu [do alto de seus nove andares].

A vinda detonou pesadelos para os burocratas do Partido e ameaças para jovens mecânicos, advertidos 999 vezes de que tudo deveria funcionar, senão...

Senão Nada. Stalin não veio. A explicação oficial é que assoberbado por uma complexa conjuntura externa, o Guia Genial dos Povos teve de se privar deste importante périplo. [A explicação não-oficial – que um caviar de esturjão estragado o prendeu ao banheiro do Kremlin – é considerada por demais humilhante ao país].

terça-feira, 16 de julho de 2013

16 de julho

Os sábios

As trevas se dissiparam velozmente, ao menos no bravo torrão amhitariano. Às 15 horas e 37 minutos do dia de hoje em 1844 a ignorância e a superstição dominavam o espectro – e 60 segundos depois [se tanto] a luz e a ciência seu imarcescível reino haviam estabelecido. [Ao menos esta foi a visão dos cinco primeiros médicos diplomados de Amhitar, chegados trinta e três horas e treze minutos antes na mesma caravana, todos formados na Universidade de Dacca].

Os esculápios [casaca, cartola e todo o conhecer científico] principiaram guerra de extermínio contra curandeiros, parteiras, barbeiros e vovós sabidas e para tanto fundaram neste minuto preciso a Sociedade Médica de Ahmitar. Em pouco tempo os chás e infusões caseiras haviam sido proibidos, duas dúzias de velhos raizeiros curtiam pena na cadeia e os novos donos do saber brigavam entre si. Dois deles [com o influxo de três residentes recém-chegados] romperam com os outros e fundaram o Sodalício dos Doutores Objetivos.

As causas de discordância entre os médicos seguem obscuras, conhecendo-se apenas os insultos que trocavam: Passadistas! Místicos! Crentes em realidades não-objetivas! e a principal delas: Corifeus de uma divindade imaginária! – para os médicos [todos] o ateísmo era questão não só de ciência como de fé. [A principal praga que rogavam uns contra os outros – quando você estiver morrendo, vai rezar! – nunca pôde ser comprovada, por falta de registros de últimas palavras].

segunda-feira, 15 de julho de 2013

15 de julho

O antiprofeta

Os críticos literários nacionalistas clamam que, enquanto todo o mundo regurgita de banais anti-heróis, a brava terra amhitariana produziu um antiprofeta. [Bakhram Jumanova não é exatamente original – outros estranhos místicos como ele formam tradição do país, celebrada a 23 de junho]. Seu caráter de primeiro-entre-os-pares dos profetas-com-dúvidas vêm de ser tradicionalmente considerado o mais antigo deles e de uma [talvez superficial] semelhança com os profetas tradicionais: Bakhram [concordam as 4 únicas versões escritas sobre sua vida] possuía barba branca; passara tempos no deserto; e rejeitara sua aldeia e circulava pelo mundo. [Outra especificidade é uma irritante incerteza sobre seu período de vida, que o faz localizar desde 88 até 1079 dos hereges - supostamente nascido hoje].

Profetas falam empostado, despejam certezas e tonitruam contra quem diz o contrário. O profeta amhitariano tossia, pedia licença, e depois de uma longa peroração sobre o Bem e o Mal fazia uma cara [que não poucos diziam ser de dúvida] e lançava uma frase bombástica pela sua falta de força: Não sei se meus caminhos são válidos.

A pouca assertividade nunca lhe garantiu muitos adeptos – tirando três círculos que nunca passaram de 19 adeptos ao total, não se pode afirmar que o Bakhramismo tenha efetivamente existido. Um desses grupos [não o menos aguerrido] tentou propagandear que as certezas só geram guerras e maldade. Por que não venerar um profeta que duvida? Não teve sucesso.

domingo, 14 de julho de 2013

14 de julho

O verdadeiro patriote

As vinte e três horas e cinquenta e sete minutos do dia 14 de julho de 1889 encontraram [quase] toda a cidade de Shmaerkhaaent em decepção. Por todo o dia esperaram uma explosão de afeto por parte do já idoso e famoso historiador e ensaísta Dilafruz Michelet.  [Seu nome era Dilafruz Shahmat mas o amor por La Belle France, pelos croissants e pelo historiador da Revolução Francesa Jules Michelet o fizeram adotar o sobrenome deste último (além de construir uma história de vida totalmente fantasiosa para si, comemorada nestas efemérides a 8 de maio)].

Sendo hoje o centésimo ano da sua amada Queda da Bastilha, todos previam explosões de amor francófilo, mas nada - Dilafruz tomou seu café, tirou o chapéu para os de sempre, deu duas horas de aula para as normalistas da Escola para Professoras Catarina a Grande, recolheu-se à seção de mapas da Biblioteca Pública, tomou seu chá. [Em toda parte 999 olhos o seguiam].

Com três minutos para terminar o dia [os netos o cercando] esbugalhou os olhos e berrou o mais desafinado Allons enfants de la patrie le jour de gloire est arrivé registrado na história recente. Do berro caiu estatelado. Choveram lenços com álcool e água fria. Um par de minutos  de suspense e o velho historiador reacordou. Disseram-lhe que quase morrera.

Sem ocultar cara de decepção disse: Como seria doce ter morrido no mais belo de todos os dias! [Este excessivo amor por outro país não deixa de causar certo ciúme até hoje em Amhitar].

sábado, 13 de julho de 2013

13 de julho

O simples rejeitado

O Da absoluta simplicidade do Reino de Amhitar adentrou [talvez lamentavelmente] o imaginário nacional. Escreveu-o o cronista Abdul Al-Wazahari em uma série de tratados começados por Do ou De [e o fato de tal sequência incluir títulos como De como encher o estômago dos convidados com bobagens quando se tem pouca comida ou De como puxar tranças de cabelos quando se é criança (considerados não sérios) pouco tem feito pela sua aceitação nos eruditos meios nos quais circula].

O tratado principia por imaginar o país como um terreno plano [no qual imperam a falta de imaginação e a monotonia (diz o autor em trecho particularmente odiado)]. Afirma que Alá ou a natureza [a dúvida pertence ao próprio Abdul] resolveram por lei ou pelo ócio preencher o vazio com uns [poucos] cursos d´água, meia dúzia de montanhas [nada que se compare à beleza do Pamir ou do Himalaia – afirma o quase ranzinza autor] e principalmente, com um povo.

A Terra [e aqui se encontra a parte cruciante da obra] por gerar os habitantes, os fez à sua semelhança: as mentes rasas como o solo, os corpos retorcidos como as pedras, eis aí o nosso povo – e com tal frase não isenta de dramaticidade barata Abdul fecha o livro. Lembrado pelo resto de sua obra, o autor é compreensivelmente esquecido por esta. Sua presença na lista de festas nacionais se deve a decisão [não isenta de orgulho] do Comitê Central em 1961 que lhe assinalou o dia de hoje, afirmando que O país é maior que as críticas.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

12 de julho

O mais proibido filme

Da inexistência desta excrescência chamada Uzbequistão estreou hoje em 1956 às 15 horas e 9 minutos em 33 cinemas. [O Discurso Secreto de Khrushchov (esculachando tudo e prometendo novidades) espalhara um perfume de liberdade  – o povo dizia que já se apertava a descarga sem precisar berrar Viva o Grande Stalin! – e já diziam piadas como esta (de duvidosa comicidade) sem passagem de ida para a Sibéria].

As limitações do tal perfume [no entanto] quedaram claras às 19 horas e 15 minutos quando a Jaghonjidza-il-Halohnevda [a polícia política amhitariana, mais conhecida como Jaghon] recolheu as cópias e queimou 31 e metade de uma delas [restando apenas uma inteira, previsivelmente na mão de um tira cinéfilo, e partes de outra, usadas na sede da Jaghon para tapar o teto da cozinha].

Nada agressivo [apesar do título] o filme [com imagens de arquivo e voz de locutor] informava que nunca existira um país chamado Uzbequistão [apesar de ele ocupar quase todo o antigo território amhitariano] e que este na verdade fora um só mais um dos periódicos delírios de Trotski de mudar os cardápios, as rodas de bicicleta, o mundo e os países e tudo o  mais que fosse.

Tão mansa era a película que a justificação oficial para seu sumiço foi a rima do título, considerada de mau gosto – pois no protodialeto khazyr o título Khouiolikhtah-el-Mughbrioikhtah também rima – e permite uma cacofonia com necessidades fisiológicas, o que não ajudou na hora de decidir pelo sumiço.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

11 de julho

As estradas que do talvez nunca houve

Os 399 caminhos que levariam ao vale de Jizzack não seriam, na verdade, 399 [a própria existência do Vale sendo em si questionada; segundo três estudos do duvidoso Instituto de Pesquisas de Alma-Ata (duvidoso porque pertencente aos descendentes dos fidagais inimigos de Amhitar, os Kazaks) a atual província com este nome seria resultado da imaginação criadora do SemiSultão em 1854, ansioso por criar heroísmos].

O número de vias de acesso se impõe não por transporte mas por orgulho histórico. A sua grande quantidade [e o fato de que um exército invasor necessariamente se divide ao invadi-las todas] seria responsável [dizem] pela derrota de Átila o Huno / Gengis Khan o Terrível / Tamerlão o rei dos Tártaros / Napoleão o ambicioso / e até dos Panzer de Hitler [o invasor sempre varia de acordo com a fonte]. A discordância quanto ao inimigo se dissipa, no entanto, quanto à data – a vitória popular sempre se deu a 11 de julho. [Desnecessário dizer que na quase totalidade das versões o (inevitável) Donyhor al-Temurbek presente se encontra, mesmo como menino].

Os geógrafos não conseguem traçar as estradas, os historiadores não lhes localizam os planos, nem os engenheiros consideram lá muito propícios os terrenos onde se situariam. De qualquer forma todos comemoram a data. Já houve proposta [pouco democrática] de considerar traidores os que duvidassem do 11 de julho, felizmente derrotada. 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

10 de julho

O sábio dos olhos grandes

Confúcio [K'ung-fu-tzu] ensinou os amhitarianos a desenhar. [Dizem – o Monge Gelasiminius compreensivelmente silencia a respeito de um pagão; o cronista Abdul Al-Wazahari refere-se a uma passagem de seis dias e meio e nada mais fala; os modernos (com exceção da entusiasta e nem sempre confiável em questões patrióticas Academia de Ciências de Amhitar) nada afirmam de tal suposto fato].

Ensinou-os a desenhar. E sempre figuras com os olhos grandes, desproporcionais, e não sem alguma voluptuosidade das figuras femininas. Afirmava também que o fraco vence o forte, não por alguma doutrina de não-violência mas pela pancada mesmo. E instruiu os amhitarianos na arte de dar gritos e enquanto gritavam descer murros uns nos outros [sempre visando ao autoconhecimento, insistia]. Aos seus melhores discípulos, dava-lhes o título [que em outros soaria ridículo] de Gafanhoto.

Esta a lenda [celebrada hoje por ser a suposta data da partida do mestre]. Uma nova versão [citada em nota no Izvestia de Moscou nesta data em 1981 e reproduzida na edição seguinte da Gazeta de Amhitar] afirma que talvez Confúcio nunca tenha vindo, e se veio, não era este autor de mangás e lutador de Kung-Fu. A lenda seria obra de grupos underground decadentes, aos quais não se deveria dar crédito. Malgrado esse banho de água fria, ou por causa dele, metade dos mangás amhitarianos têm Confúcio como personagem, ou então um seu neto, que conquista todas as garotas de enormes olhos.

terça-feira, 9 de julho de 2013

09 de julho

As cavernas sem graça

Até mesmo o romântico historiador Dilafruz Michelet [em raro rompante de mau humor] disse que as cavernas de Chalkad [a seis milhas da cidade santa de Uchkuduk] representavam um caminho de ouro para os materialistas de Amhitar.

Não por coincidência foi o objetivo Iusya Marzhaffar quem denunciou as velhas lendas sobre as cavernas: de que atravessavam o mundo e chegavam às Ilhas Seychelles e morenas virgens esperavam o bravo que fizesse a travessia; que tal caverna inspirara a travessia de certos Dante e Virgílio ao centro da terra, e que o primeiro devia levar um processo por plágio; que sete Paraísos [o cristão, o muçulmano, o judeu, o confuciano além de três menores] se situavam no seu centro – e outros entusiasticamente abraçados por patriotas e românticos.

Para sua ira coletiva Iusya destrinchou como cada uma dessas lendas surgira em uma época diferente; que cada uma tinha como base um escrito por sua vez sem base nenhuma; que nem mesmo tais lendas eram originais (faz troça da pretensa crítica ao poeta florentino).

As evidências [coletadas depois em três expedições, a última delas em 1999] parecem dar razão aos [aborrecidos] materialistas. Longe de ser um lugar mágico de Ali-babá, a caverna parece ser bem monótona. Quanto ao seu fundo, não deságua em nenhum lugar de sonho – e sim dá uma volta e retorna para o ponto de partida. Um final deveras pós-moderno – afirmou A Academia do Passado Inexistente, inevitavelmente pós-moderna.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

08 de julho

Os heroicos sapatos

Deve-se a Java Kharlilah o tratado A História Completa dos Chinelos, Pantufas e outras Coberturas de Pé, publicada hoje em 1901 na livraria A Eternidade talvez não dure para Sempre [inspirado em vaporosa obra amhitariana]. Que o homem dos heróis tenha escrito obra tão prosaica foi por décadas objeto de quase-duelos. [Para Java o mundo se resumia a cavaleiros em batalhas, princesas apaixonadas, malvados magos e pios monges – todos de certa forma heroicos].
A História Completa... se refere ao momento em que o um espinho penetrou o pé do primeiro pitecantropo amhitariano, fazendo-o [além de pronunciar uma meia dúzia de palavras já na época impublicáveis] ter a ideia de matar um tigre de dentes de sabre para com sua pele cobrir o pé pitecantropo-amhitariano.

Não logrou este bravo pioneiro o seu digno propósito – almoçado que foi pelo muito mais rápido tigre.  Os revolucionários porém sempre inspiram outros e um dia os férteis solos da grande planície do Syr-Daria tinham a [pesada] honra de serem calcados por jarreteiras de couro, coturnos de soldado, sapatilhas de bailarina, pantufas de idosos, sapatinhos acolchoados de bebê e até pelas botas velhas de Van Gogh [que afirmam, de maneira absolutamente inverossímil, ter visitado Amhitar].
Nenhum homem escapa de seu destino, no entanto, e Java Kharlilah voltou atrás e afirmou ter escrito tal obra sob influência de sete litros de absinto tomados em sequência – o que não deixa de ser um ato heroico.

domingo, 7 de julho de 2013

07 de julho

O Dia Nacional das Contradições

Mukhayyo Danyiar e seu gorducho ajudante Payton Halim [sendo inevitável a comparação com um fidalgo da Mancha e seu auxiliar de Pança] iniciaram sua cruzada hoje em 1896. Procurava sua inimiga, a filha mais velha da morte. Ela se escondia nas vielas sem esgoto, nos cortiços em que dois dividiam um metro quadrado, nas casas em que a lama era o único soalho. Cavaleiro, armara-se de lança [uma seringa de vacinação] e de cavalo [um cavalo, mesmo]. Procurava a peste. Esta cravara os dentes ocos naquele verão e multiplicava pus e adolescentes mortas.

Mukkayo o primeiro dos farmacêuticos de Amhitar conhecia a vacinação obrigatória – e o General, o Ministro, o Juiz, o Emir, o Xeque e o até o Arcebispo ortodoxo também a conheciam. Todos derramavam lágrimas pelos mortos e pelos que ainda iriam morrer, lamentavam o cruel destino que criava óbices a suas boas intenções – e não faziam nada. O farmacêutico pegou seu gordo empregado e seu magro cavalo e vacinou aqueles a quem o governo negligenciava. Ganhou três campanhas de descrédito na imprensa e cinco processos judiciais.

Bom mas não santo [provando que talvez as duas coisas sejam antitéticas] Mukkayo tinha nojo das pessoas simples a quem vacinava. Achava-os burros, feios e até inferiores. E lhes salvou a vida. O brevíssimo governo do general Chavkat [por si mesmo uma plenitude de incoerências] anos depois deu a este dia a [duvidosa] honra de homenagear as contradições.

sábado, 6 de julho de 2013

06 de julho

Negação do ilimitado

Alexander Koyré em passagem não pouco contestada [e talvez por isso desaparecida] da 2ª edição de seu [em geral elogiadíssimo] Do Mundo Fechado ao Universo Infinito refere-se ao Reino de Amhitar [que ele chama equivocadamente de Império Amhitaki] como sendo uma das [poucas] resistências em todo o mundo à visão moderna trazida por Galileu e Newton.

Segundo Koyré, tal visão defende que o Universo é Infinito. Vitoriosa em todo o mundo, esta versão esbarrou em Amhitar no Edito das Iniquidades, do [não pouco criticado] SemiSultão Dhoxrux, sancionado hoje em 1850. Tal [pequeno] diploma legal [que no segundo artigo obriga as crianças a usarem lenços para se assuarem, e no terceiro e último regula os carimbos dos decretos reais] no seu primeiro artigo afirma serem nocivos ao bom senso e aos recursos minerais e vegetais do Reino [o que alguns veem como uma nascente preocupação ecológica] quaisquer menções a: mundo infinito, mar infinito, vida infinita, água infinita, céu infinito e todas as demais equivalentes, sujeitando-se os infratores a multa e, em caso de reincidência, decapitação desonrosa.

Abstendo-se de perscrutar as razões de tal ato, os historiadores nacionalistas lhe elogiam os efeitos: por ele Amhitar ainda estaria longe de ser um dos maiores contribuidores ao Aquecimento Global, e também por acusa dele a literatura amhitariana não se entupiu dos labirintos e infinitudes que se espalharam como praga de papel e tinta noutros lugares.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

05 de julho

O Dialeto de areia e estrelas

A origem do dialeto Bakhmar não se perde na origem dos tempos - pelo contrário [e este é o motivo da incontestada precisão desta efeméride] tem um início muito claro, a data de hoje do ano de 798 A.C. dos hereges [tão longe dos tempos do Profeta que os adeptos de Alá o Misericordioso preferem não contá-lo] [e também o ano 15,9870 do terceiro mês Murhgweui do ilógico calendário Khazyr  - pois os bakhmaris [por seu horror à objetividade] nunca tiveram um calendário.]

Tal data comemora o momento em que Alisher-Stas-Bakhamad [que segundo algumas tradições significaria Sou estrelas e areia] na beira ocidental do lago Sarygamish concluiu [olhando a dispersão dos astros e das ondas] que o segredo para o entendimento [entre os homens e entre estes e as coisas] estava na unidade de sentido, não em definições amarradas.

Tal estalo de gênio [sem deixar de ter seu grau de indeterminação] baseou o dialeto que por sua vez criou o coração de uma nova cultura, na qual uma palavra como Mlark significa cachoeira, crise bancária, diarreia e cometa [tenho todas em comum um movimento para baixo] assim como Zuit significa coração, sol, semente e esterco [este oriundo de dentro do boi] todas denotando um centro. A poeticidade do dialeto de Bakhamad garantiu sua sobrevivência por séculos e sua quase inexistência nos tempos de hoje, na qual as coisas não passam de banais rótulos das palavras.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

04 de julho

O Dia Nacional do que não há

O Secretário-Geral do Partido abriu hoje em 1936 o Congresso Mundial e Universal das Inexistências recusando-se a desejar boa sorte aos participantes, pois isso de boa sorte é uma realidade não-existente e as realidades não-existentes são proibidas.

O Congresso não teve origem na megalomania mas na fraqueza. Um relatório secreto [logo vazado para o público] do Comitê Central revelara que uma parcela não pequena da população acreditava em coisas que não se podem ver nem tocar, tornando-se premente uma ação para combater este surto de não-objetividade.

Na tribuna sucederam-se matemáticos, especialistas em embalagem, técnicos em resistência de materiais, fisioterapeutas, engenheiros de locomotiva e uma pletora de profissionais acostumados à dureza do mundo e do ferro. Os títulos das palestras variaram de Por que o lobisomem é um mito; Malefícios de se contar tolices sobre Cinderela para as meninas; Desejar Boa Viagem é um desserviço; Como deixar de colocar vassouras atrás de portas para se livrar de visitas importunas além das inevitáveis Do não-realismo de qualquer divindade e Por que não existe nada que não se possa ver, exceção feita ao vento.

Nove dias depois uma chuva de aplausos marcou o fim do congresso. O único senão [dizem] foi que, ao sair, uma autoridade olhou as nuvens cinza e falou Talvez tenhamos boa sorte e não chova.

- Tomara mesmo – disse outro e bateu três vezes na madeira.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

03 de julho

O estranhíssimo fuzilamento de Alexi Zafar

- Meu objetivo de vida é atingir a imortalidade. Não pelo meu governo ou pelas minhas obras, mas não morrendo mesmo.

O Almirante Zafar [presidente da República Provisória] pronunciou essas palavras sem nenhum tom de blague no discurso de oitavo dia no poder [papel datilografado na mão e bigode encerado] hoje em 1917 no Palácio da Pátria [ainda perfurado de 387 buracos de bala segundo algumas contagens]. Seus assessores não riram – enfiados até as unhas no golpe que levaria seu futuro ex-chefe ao paredão vinte e duas horas e três minutos depois.

Historiadores Kazaks [compreensivelmente odiados pela corrente nacionalista] atribuem a Amhitar o recorde mundial [e altamente contestável] de 53 governos em 1917 e 1918. Nesta multiplicação de oportunidades os diversos tipos da fauna humana ascenderam ao poder supremo – entre eles o vendedor de peixe Alexis [levado por um Golpe de sargentos], que se promoveu a Almirante no segundo dia [pois gostava do mar, apesar do país não o ter] e se caracterizou pela honestidade de suas palavras em seu curtíssimo período. O qual terminou em um paredão esburacado do Palácio.

[Dizem] que tudo era farsesco: sabendo que seria deposto como o tinham sido 19 antes, organizou sua autodeposição, o seu fuzilamento fake e viveu a vida tranquilo como fabricante de estopas em Bangkok [como não há registros de sua morte, não são poucos os que creem que atingiu seu grande objetivo].

terça-feira, 2 de julho de 2013

02 de julho

A outra faceta do herói

Bekzod Shahlo não tem tempo certo – as especulações sobre o período em que viveu variam desde o ano 150 [no tempo dos hereges] até nove mil anos antes disso e até antes, em um tempo mítico [o que não impede que sobre tal tempo de sonho haja discussões cronológicas]. Também não tem lugar – 399 cidades e aldeias reivindicam a honra de tê-lo visto nascer. [Isso, é claro, além das especulações se ele seria mais um avatar do inevitável Donyhor al-Temurbek].

Como seus pares em outras culturas Bekzod é incensado e beijados são cada um de seus passos. [Como em nenhum deles, silencia-se acerca de Bekzod e só pretensos especialistas falam, ainda assim baixo].
O patriarca [barba branca e cara de sábio nas estátuas] ensinou os longínquos amhitarianos [previsivelmente selvagens até então] que colocando-se uma semente no chão algo acontece [um milagre] e ela se torna planta e [outro milagre] surgem novas sementes.

A história de Bekzod não se diferencia de outros heróis civilizatórios, exceto porque [em uma contra-tradição des-louvatória] comenta-se [ou não se comenta] que promovia festas onde roupas eram demais, todos os sexos eram aceitos e nenhuma norma era seguida. Compreensivelmente os discursos do Dia Nacional da Agricultura [hoje] esquecem tal faceta. Pensou-se em louvá-lo pois tais rituais teriam, afinal, algo a ver com fertilidade [e portanto com cultivos]. Com razão ou sem ela, a proposta não foi adiante.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

01 de julho

Dia da tolice a nado

As piscinas em Amhitar escapam da [inevitável] banalidade de suas congêneres não-amhitarianas [meros receptáculos de água, substâncias verdes e lembranças de crianças, e  palco para profissionais do nado com mais suplementos que sangue nas veias]. Certo Sub-Xeque [do qual a história oscila entre os nomes Zoda Azam e Raxmonov Spiro – com possiblidades maiores para o primeiro] decidido a ensinar a seu povo as virtudes do banho e do exercício [pouco populares em 1037 dos hereges (428 da Hégira)] decretou a escavação de um buraco de exatas 499,97 braças de comprimento [nunca tendo sido determinadas as razões de tal precisão ou capricho] e seu preenchimento com água do rio Amur-Daria.

Debelados os temores de que tal transladação terminaria por secar o rio [coisa que quase aconteceu, segundo um estudo de história ecológica de 1999 da Universidade de Delhi] o pressuroso quase-rei [os súditos a multidonear à volta] mergulhou uma vez – voltou à tona e levou cascata de aplausos [ninguém ali sabia nadar]. A expectativa [por alguma razão inexplicável] dizia respeito ao terceiro mergulho – mas logo no segundo a autoridade pareceu gostar do subaquático - e levou tempo excessivo.

Os súditos o puxaram do fundo de sua obra e o cremaram, atirando suas cinzas [ironicamente] no rio que ele quase esvaziara. Três sub-seitas atualmente ainda realizam um banho periódico ritual na data de hoje – para evitar ser tolo como aquele que foi engolido por sua tola obra.