quinta-feira, 31 de outubro de 2013

31 de Outubro

O ataque dos fakes

Um bombardeio de 19 Messerschmitts Bf109 da Jagdgeschwader da Luftwaffe comandada pelo Geschwaderkommodore Fritz Von Schmidt atingiu hoje em 1941 a Ponte de Fraternidade entre os Povos [entre Amhitar e o Turcomenistão]. Uma furiosa edição do Pravda manchetou que as hordas dos hunos por sua traição mereciam a resposta da Unidade Popular na Grande Guerra Patriótica.

Ninguém acreditou. As tropas nazistas se encontravam a bons três mil quilômetros. O caráter fake de tal ataque, no entanto, quedou mais patente por detalhes não técnicos. A profusão de impronunciáveis nomes germânicos como Geschwaderkommodore e Jagdgeschwader denunciava que alguém queria marcar um exotismo teutônico. O detalhe principal, no entanto, foi o nome absolutamente bobo do tal comandante [Fritz Von Schmidt]. As fofocas [que se espalharam como areia] diziam que este nome seria o primeiro que ocorreria a um agente de propaganda que quisesse criar um comandante falso para um ataque idem.

E de fato pouco antes do fim da guerra uma nota [agora bem menor] na quinta página do segundo caderno do Voz do Proletariado Vitorioso [o jornal do Partido] afirmava que os rumores espalhados por espiões inimigos de uma ataque ao sagrado solo amhitariano não se tinham confirmado. O que não impediu de este dia fake de entrar para o calendário nacional, pela admiração que os homens [mesmo os amhitarianos] têm pelas guerras.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

30 de Outubro

O Maior Filme

O Destino quis [mas o Destino não quer nada] que Raya Nozimjon não terminasse o Maior Filme da História da Humanidade [epíteto que sem nenhuma vergonha e com não pequeno nacionalismo apregoa-se em Amhitar ao seu incompleto Do Começo ao Fim – Uma História].

A grandeza de Do Começo ao Fim não se deve a supostas qualidades expressivas ou inovações estéticas [de resto de valia discutível em uma arte cujo magno objetivo é ajudar o espectador a comer pipoca] porém a algo mais lógico, o seu tamanho. Desde criança Raya quis fazer um filme, e um filme no qual ele seria o único ator, ou o único ator de importância. Até aí nada muito anormal.

Raya no entanto começou a se filmar aos onze anos e não parou. Filmou-se aos onze, aos quarenta, aos vinte e nove, sessenta e um. Superaria a grande limitação dos filmes biográficos, a necessidade de contratar vários atores para o mesmo papel, pelo envelhecimento das pessoas. Sua solução [ou excentricidade] lhe permitiria fazer a si mesmo uma pergunta com cinquenta e dois e responder com dezenove.

Uma estúpida explosão numa fábrica de cimento hoje em 1977 [na qual fora registrar tomadas] impediu o [já idoso] cineasta de gravar as derradeiras cenas de sua película, cujo final [com não pequeno realismo] ele previa para não muito longe. Restaram pilhas de latas de fita, que, não montadas pelo autor, revelaram-se de pequena valia, apesar de algumas tentativas para festivais de Cine de Arte [e para lamentação dos patriotas].

terça-feira, 29 de outubro de 2013

29 de Outubro

 Francesa Fraqueza

De Paris retornei não uma mas nove vezes: na primeira veio meu corpo; as seguintes foram tentativas de fazer retornar minha alma – escreveu Dilafruz Michelet no seu [múltiplas vezes renegado] opúsculo Porque Amhitar é veramente o mais Desajeitado de Todos os Países, na verdade uma longa entrevista com extremos de fake porque conduzida de si para si mesmo.

[Os (não poucos) fãs do maior historiador de Amhitar (segundo eles) enfatizam que a extrema modéstia do seu herói o impedia de aderir a qualquer tipo de infinitude por isso limitou a singelas oito as tentativas de esquecer a Ville Lumière, da qual retornou em dia convenientemente de nuvens pesadas, hoje em 1867].

Admirador da França, leitor da França, falador de francês e até bebedor dos [raros] vinhos  que apareciam no mercado de Shmeekhant [apesar de detestar álcool], Dilafruz cometeu seu grande erro quando viajou à terra amada. Na volta o seu Amhitar natal lhe pareceu baixo, as pessoas tolas, os prédios carentes de graça, até os queijos muito limpos, sem o circo de  vermes que fazia os Camembert e Brie verdadeiramente franceses. Escreveu então [em poucas horas de saudade parisiense] o opúsculo, no qual se confessava um francês exilado.

A obra tornou-se única: a admiração dos seus fãs não os impediu de dar um fim aos 399 exemplares impressos, no que foram bem-sucedidos em 398, restando um como testemunho de um momento de fraqueza pouco patriótica do mestre.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

28 de Outubro

Inverdades fotografadas

Os inventores do Photoshop [dizem] fizeram homenagem [no dia de hoje em 1992] ao Álbum da Inigualável Terra de Amhitar, publicado exatamente cem anos antes pelo Governo Militar Russo. [O fato de que tal homenagem é conhecida apenas em Amhitar não impede os patriotas de trombeteá-la não só como autêntica mas como merecida].

O pioneirismo de tal publicação se deve não a nenhuma possível odalisca de topless [como são as imagens pelas quais o programa distorcedor de fotos ficou conhecido], mas a seções que [em princípio] poderiam parecer aborrecidas, mas que, em tal livro, fascinam.

O capítulo de Zoologia, por exemplo, inclui fotografias de um touro de sete chifres em forma de saca-rolhas cuja legenda o identifica como Takhvazz. [Durante muito tempo imperou a explicação de que tal animal era fruto de uma mutação genética, da qual o Zoológico de Amhitar teria tirado (não muito honesta) vantagem. A versão mais corrente hoje é que tal bicho é fruto de papel e cola sobre a fotografia de um touro comum]. Outros capítulos incluem castelos apoiados em nuvens, velhos de barbas de dez metros, previsíveis garotas de harém com menos previsíveis cinturas de não passavam de um palmo, além de safiras de uma braça.

A homenagem [embora orgulhe à maioria] ofende alguns amhitarianos, que insistem que tais programas computadorizados são uma forma sofisticada de mentira, sendo desonroso receber homenagens por tal motivo. Tal argumento [dizem] merece alguma reflexão.

domingo, 27 de outubro de 2013

27 de Outubro

Fronteiriço Andarilho

O Problema das Fronteiras de Amhitar não é sua indefinição mas sua inexistência e esse dístico [não isento de cansada melancolia] encimava o relatório que uma comissão mista colocou hoje em 1879 na mesa do General Konstantin Petrovich Von Kaufmann [o todo-poderosíssimo comandante do exército de ocupação russo].

De fato a maior parte do Relatório [e que por isso não foi poupado de críticas por uma suposta incientificidade] se refere a certo Zhorfaz Ladnyn, o qual [em tempo indefinido que varia desde o século XIII até um mês antes do relatório] teria percorrido todas as fronteiras, seus pés sobre a linha imaginária. Ao contrário do lendário andarilho Dasha Ulugbek [do qual o não menos lendário Zhorfaz teria sido admirador] ele não teria sido um jovem explodindo energia - as história de aldeia o pintam já idoso, barba arrastando ao chão, cabeça quase sempre baixa não por desânimo mas por preocupação de que seus pés nunca pisassem fora de uma linha que só ele conseguia ver.

Dezessete comissões [e nove esboços de tratado] tentaram [com sucesso variável mas sempre pouco] descobrir como Zhorfaz achou o inachável, a fronteira. Explicações místicas [inspiração de antepassados falecidos ou uma divina luz] têm sido propostas, rejeitas e de novo aceitas. A ideia de que ele não sabia de nada, apenas pisava em qualquer lugar e todos acreditavam [impressionados por sua aparência mística] tem sido recorrente, e rejeitada por seu excessivo cinismo.

sábado, 26 de outubro de 2013

26 de Outubro

Dia dos Mágicos

O grande Zalto era bom para fazer explosões – e mais nada além disso [diziam (e ainda dizem) os seus (não poucos) detratores, a maioria deles artistas mordidos pela inveja das marcas que o outro deixou (de uma forma ou de outra) pelas poeirices da História].

Grande Zalto obviamente não era o nome do mais lembrado mágico de Amhitar, e como convém a um mágico os fatos mais relevantes da sua vida são mistério, a começar pela data de seu nascimento [que uma velha tradição sem documentos considera no dia de hoje em ano que vai de 1801 até 1855]. É certa no entanto sua indumentária – o chapéu cônico de luas e estrelas, a capa arrastando no chão, e principalmente o bonequinho ventríloquo [chato e impertinente como todo bonequinho ventríloquo] que de tanto repetir que seu Mestre era o Grande Zalto acabou por colar o adjetivo ao nome.

O Grande Zalto e seu boneco [além da barbichinha do mago, que acabou também por fazer parte do seu look] não detonaram as plateias de Amhitar com seu sucesso. Seus truques [os poucos testemunhos concordam quase todos a respeito] não passavam das bobices de sempre: ovos tirados de orelhas, secretárias de palco serradas ao meio, além do inevitável coelho [sempre o mesmo] tirado da [sempre a mesma] cartola [na verdade o chapéu cônico].

Um século depois o Partido quis nobilitar duplamente o dia de hoje, fazendo-o A Jornada da Simplicidade Eficiente. Tal iniciativa caiu no ridículo e em [talvez merecido] esquecimento.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

25 de Outubro

Os anjos não irão ao Paraíso

estreou hoje em 1998 [não sem certa resistência] nas [então únicas] sete casas de jogos de Shmaerkhaant. [O relativo isolamento tecnológico do país o condenara até então a uma ditadura do telejogo e do inevitável fliperama]. Composto inicialmente em dois CP-500s contrabandeados [e depois atualizado para rodar no sistema Windows 3.1], o game relata a história de três querubins, Ariel, Shmael e Galiel. Arial canta, Shmael dança e Galiel picha as ruas da cidade.

O enredo começa quando Galiel decide fazer o bem, e começa pelo óbvio – perguntando como se faz isso. Após receber as respostas mais inimigas umas das outras [geralmente de cunho religioso] decide jogar tudo fora como nonsense e [acompanhado de seus amigos] decide atravessar a cidade [uma enorme cidade inominada, com pouco verde, muito crime e traffic jams] para do outro lado dela alcançar o bem, ou alguma coisa.

Para tanto, Galiel cola o pensamento na ação – farei o que pensar – é o lema dos três – o que os leva a não pouca confusão – inclusive com a polícia. Doam toda a roupa a pobres [e são perseguidos por indecência], roubam limusines, choram junto com viúvas. O final depende das opções do jogador.

Acusado de ser mais tratado teológico que um game, Os anjos não irão ao Paraíso teve uma surpreendente aceitação entre a adolescentada. Até religiosos o elogiaram – até perceberem que em vários dos finais possíveis a conclusão era Religion is Trash, o que diminuiu seu entusiasmo.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

24 de Outubro

Irreal Visita

Anos depois o Pravda de Moscou [com imparcialidade e delicadeza próximas do zero] estampou que fora Um Nada visitando outro Nada [sendo o segundo desses Nadas a terra amhitariana]. Os poucos nativos que viram [quase todos camareiras ou garçons] lembram apenas de cinco garotas [muito bonitas, reconhecem] jogando miolos de pão arredondados umas nas outras... e nas camareiras e garçons.

Passaram por Amhitar hoje em 1912 [e o fato de apenas passarem, de volta de uma viagem a Alma-Ata, não deixou de ferir o orgulho nacional].

Saiu em primeiro um oficial quase baixinho, de olheiras visíveis a metros. Atrás uma mulher cara-de-maluca e um menino cara-de-dar-pena, além de cinco garotas [o único vestígio de beleza no lugar].

Um mar de gente os aguardava na Estação Central – aguardava principalmente a Ele. Perguntavam-se: o que faz um Czar? O que fala um Czar? E a principal: como é um Czar?

Uma vaga de decepção percorreu – aquele bisonho era o Czar – e os demais sua Augusta Família.

Nicolau II [o bigode manchado de branco, depois de uma xícara de leite], se falou ninguém lembra. Sua mulher só tinha olhos para o menino, e o menino bocejava. Os cortesãos tremiam. O homenzinho espetou medalhas em peitos e voltou ao trem, depois de um café da manhã na Estação. [De tão pouco marcante, mesmo testemunhas oculares contestariam a ocorrência da visita]. Duas camareiras guardaram bolotinhas de pão jogadas pelas princesas – mesmo depois que estas foram fuziladas.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

23 de Outubro

Tolas colheitas

A hipótese antropológica de que toda festa de colheita é animada – esta terra chamada Amhitar reduziu-a ao pó da inexistência!  - Esta observação [à qual não falta amargura] escreveu-a no seu Terceiro Tratado das Inconsequências o sábio chinês Qzi Laotsung e se baseia nas suas [desafortunadamente não muito longas] viagens pelo país nos anos 1900 e 1910. [Foi repetida pelos antropólogos René Girard e Mircea Eliade, tendo sido depois inexplicavelmente retirada do seu Mito do Eterno Retorno].

A causa de tanta revolta se deve a que, após muitas viagens à Polinésia e ao Mali, os antropólogos criam haver estabelecido uma lei – na época da colheita, as sociedades primitivas torravam os estoques velhos da colheita anterior e pediam com muita festa colheitas melhores na safra seguinte. Isso em todas as culturas.
Menos em Amhitar. Os amhitarianos, depois de colherem, não faziam nada. Nem deuses, luzes ou fogueiras. Às vezes dormiam, às vezes nem isso.

As acusações de preguiça foram inevitáveis – mas nem isso fazia o povo do país se mover. Os estudiosos se vingaram propalando a frase acima.

Os motivos dos antropólogos podiam não ser assim tão puros. Em outros lugares nas festas pedindo força na colheita cabiam demonstrações de outros tipos de força – e as festas (sempre em conjunto e sem roupas) seriam impróprias para menores, se já existisse a censura classificativa. O desejo de que Amhitar fosse como as outras culturas pode indicar certo instinto Voyeur

terça-feira, 22 de outubro de 2013

22 de Outubro

O inviável monoteísmo

Das 777 sub-seitas da religião Khazyr [este número tem sido periodicamente sujeito a disputa] 776 têm sido [não sem certa injustiça] condenadas ao oblívio. A razão de tal [segundo um pronunciamento (surpreendente) da Academia de Ciências de Amhitar hoje em 1893] deve-se ao Amor ao Sensacionalismo, que faz com que os povos achem monótono o que não diga respeito a crimes e às coisas do amor físico].

Tal julgamento do julgamento popular contém por si mesmo suas próprias injustiças, pois a 777ª seita não foi esquecida. Salvaram-na de tal destino o interesse histórico e três tiras de couro sem data em caracteres surpreendentemente legíveis [até porque poucos]. São poucos porque, e como referiu a citada Academia em reunião posterior no mesmo ano, esta interpretação particular da religião Khazyr afirmava que Deus existe; que ama os homens; que criou o mundo [e a própria instituição reconhece que até aí não há novidades – a bomba vem de que] e por amá-los, não lhes proíbe nada. O Deus dos Khazyr não se mete em adultérios nem orgias nem sandálias nem carnes de porco nem delírios sobre a lua nem nada que diga respeito a nada – esse Deus só ama.

O fato desta religião [ao menos aparentemente] tão liberal ter sido esquecida [segundo a aproximada metade dos cronistas] se deve a conquistas e insucessos da história do país. A outra metade afirma que tal religião não podia prosperar pois a gente gosta de sofrer, mesmo [e o diz não sem alguma amargura].

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

21 de Outubro

Os espiões melhores

A multidão invadiu hoje em 1991 a sede da Jaghon [a polícia política amhitariana] e não poucas decepções a espreitavam. [Vivia-se então a queda do regime e o primeiro dos três únicos dias de democracia (ainda assim imperfeita) que se seguiram].

A crença popular atribuía à Jaghon todo aquele prédio [que com suas muitas portas sem guardas e flores nas janelas tinha um tom irritantemente distinto do que se espera de uma organização de repressão interna]. Na verdade todo o Ministério do Interior se amontoava no prédio, com a Jaghon apertada entre o Escritório de Fiscalização de Galinheiros e a Coordenação para Prevenção de Urticárias e outras Afecções da Pele.

Arrebentados os fichários de aço viu-se que a Temida possuía apenas 288 agentes, metade aposentada e um quarto fazendo serviço burocrático. [Um rumor de que os verdadeiros arquivos tinham sido escondidos se revelou desafortunadamente falso].

O que não significava que a Jaghon não existia. A tese mais racional [e que por seu tom de anticlímax goza de pouca popularidade] é que a polícia política vivia de sua fama – acreditava-se que vigiava a todos – todos se sentiam vigiados – não se precisava de agentes para vigiar a todos.

Alguns autores [não sem certo patriotismo implícito] afirmam que isso fez da polícia amhitariana a melhor do seu gênero no mundo [os estadunidenses compreensivelmente afirmam que é a CIA].

domingo, 20 de outubro de 2013

20 de Outubro

O quase-sucesso

A Terrível Maldição da Secreta Seita Khazyr, de todos os best-sellers nunca surgidos [ao lado dos discutíveis Cinco Sombras de Julieta em Romeu de Edgar Allan Poe e do Romance Róseo de Erich Maria Remarque, ambos queimados pelos autores no dia em que saíram do prelo] talvez seja o único que contou com uma pesquisa minimamente séria – embora até isso seja contestado. Publicou-o [quase] uma editora sensacionalista de Londres Leste hoje em 1959 [para aproveitar o orientalismo exacerbado pelo A Terceira Visão do semitibetano Lobsang Rampa um ano antes].

Seu autor o feiticeiro amhitariano Sunnat Havasxon [que dizem na verdade ser o carpinteiro escocês John MacDonald O´Cunningham, que do exterior só conheceria as seleções visitantes no estádio de Wembley] teria [segundo o livro] explorado durante sete anos as sete artes secretas de sete milênios de existência guardadas a sete chaves pelos sete líderes da seita – e esta recorrência de setes, longe de sugerir uma lamentável falta de imaginação do escritor, apenas aumentou a credibilidade da obra. Ameaçado pelos líderes com A Maldição das Sete Mortes [e sem se dar ao trabalho de explicar como tal seria possível] Sunnat/O´Cunningham conclui a obra com sua fuga de Amhitar para a Inglaterra, para revelar os segredos ao mundo.

A Terrível Maldição não saiu afinal do prelo, ameaçada de sete processos judiciais por plágio, o que não deixou de ser interpretado como cumprimento da maldição.

sábado, 19 de outubro de 2013

19 de Outubro

Os sonhos

Dois dos três relatórios psiquiátricos sobre o caso [sendo o terceiro um parcial plágio dos antecessores] denominaram [talvez equivocadamente] o affair de O caso da Princesa Lera Danyar. [O equívoco nasce de que a princesa foi apenas uma de suas participantes, e talvez nem mesmo a mais destacada].

Datam seu início de hoje em 1888 quando a jovem acordou dizendo-se estar princesa, mas não sê-lo – ontem ela seria mucama, antes de ontem teria sido camponesa, amanhã esposa de médico, e depois tecelã de ceroulas. [Uma semana depois a princesa deixou tal conversa esquisita. Aias notaram que perdera o hábito de mordiscar o dedo mínimo].

A mesma conversa de ser uma pessoa, sonhar ser diferente e depois ser aquilo que se sonhou espalhou-se pelo país. A explicação dos médicos [quando a psiquiatria chegava com força] foi o inevitável diagnóstico de histeria coletiva. [O fato de a suposta doença só atacar moças dava força a tal percepção].

O terceiro relatório [nos seus trechos originais] afirmou que não se tratava de uma epidemia mas de uma só garota, ou ser. Sem controle, ele se encarnava [ou se transformava em avatares] em cada uma das moças, precedendo cada mudança de um sonho. A presença de um ente [ou fenômeno] descontrolado não deixa de suscitar interesse e arrepios. A Sociedade Médica rejeitou tal hipótese e, questionada, a princesa disse não lembrar nada tal semana, exceto da cor inebriante do sol, que, na sua recordação, era negra.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

18 de Outubro

A ex-apoteose da pátria

Por três séculos a data de hoje fundamentou o calendário e a existência do Reino de Amhitar, e [possivelmente] teria continuado a fazê-lo se não fossem quatro linhas escritas [em pergaminho manchado de esgoto] por um soldado que na vida civil [para seu descrédito] era limpador de latrinas.

Inevitavelmente a [ex] grande data nacional envolve uma batalha. Compreensivelmente, do outro lado vinham os inimigos Turkhmans [uma corrente minoritária dizendo que eram Kazaks]. Apoteoticamente, o principal personagem consiste no herói Donyhor al-Temurbek, dessa vez sob o nome de um de seus 999 [segundo algumas versões] avatares, o Condestável Sarbinaz Dilshod. Este, antes de afundar-se na mortífera paliçada de 9999 inimigos, bradara a seus homens algumas palavras em [quase] incompreensível dialeto Khazyr que apenas na data de hoje em 1858 [exatos 319 anos após a batalha] foram traduzidas por um discípulo da escola linguística de Abdullaeva Behruz. Falou Sarbinaz:

Não temam, homens, seguiremos vivos, de alguma forma. E se não seguirmos, não faz muita diferença.

Os poderes da época [de todas as épocas em Amhitar] tudo esperavam menos essa [quase] pós-moderna demonstração de indiferença. As muitas tentativas de interpretar de maneira patriótica tal frase caíram no oblívio, o mesmo acontecendo com a data. As [compreensíveis] tentativas da Academia do Passado Inexistente de resgatar suas comemorações têm esbarrado em sesquipedal [e algo melancólico] fracasso.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

17 de Outubro

A Segunda Fundação da Academia do Delírio

O poeta maldito Byron Jasur presidiu a primeira fundação da Academia do Delírio, em 17 de outubro de 1849 ou 1851. O poeta maldito Byron Jasur presidiu a segunda fundação, talvez com ainda mais honra [desta vez em uma bandeja de prata]: os escritores Mikhail Alexandrovitch Kovinev, Utkirbek Shahzoda, e miss Zamira Birame trouxeram a caveira de Byron [secundados pelos demais membros da Academia] em procissão com címbalos e  tambores [a expressão é da Gazeta de Amhitar, edição de 18 de outubro de 1900, presente à cerimônia].

Amantes da morte [e mais ainda do escândalo em vida] os poetas e prosadores da Academia do Delírio romperam com a mais velha Academia de Ciências de Amhitar por desconfiarem que esta, por romântica que fosse, não o era tanto quanto eles. No seu manifesto de fundação cantavam os amores desesperados, a santidade das prostitutas castas, o desprezo ao comerciante gordo burguês, além do inevitável louvor ao absinto.

Foram a primeira academia a admitir mulheres, o que lhes traz a simpatia do movimento feminista amhitariano. Seus inimigos literários diziam que sua literatura tinha pouca produção e muito consumo [de álcool]. Inimigos mais radicais ainda acusavam suas tertúlias de levarem o amor até o seu final­ - e degenerarem em orgias. Tal acusação tem pouca credibilidade, já que os acusadores também creem que o fantasma dos dois Byrons [o inglês e o amhitariano] participavam, não sem entusiasmo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

16 de Outubro

O duplo sonho da cidade

A tese da inexistência da cidade da cidade-sonho de Qarshi foi arrebatadoramente refutada. Mas não o foi [como seria de se esperar] por algum rato de biblioteca manejando alguma tese doutoral e sim por banais [porém muito mais efetivas] decisões do Subcomitê de Diversões e Entretenimentos Socialmente Úteis e não Socialmente Úteis do Partido, o qual decidiu, em modorrenta e empoeirada tarde de hoje em 1951 instalar por lá estúdios de cinema, a Ruliúde amhitariana.

[O modorrenta e empeirada talvez explique por que o primeiro surto de cinema amhitariano foi o Western (celebrado a 18 de agosto e imitado, é claro, mas ainda assim bangue-bangue) no qual sobram os duelos em tardes exatamente assim].

Dizem os revisionistas históricos que Qarshi [a cidade] sempre foi um sonho, e para provar sua [discutível] assertiva empilham manuscritos de andarilhos dos séculos II ou XVII, e o fato de nenhum ser sustentado em cacos de porcelana ou tijolos velhos de arqueólogos não os impede, é claro, de bradá-las.

E sua principal tese não vem do chão mas da doce poetisa Iroshka Maruf, a qual [em um raro poema na qual falava de algo que não sua família, seu gato e seu amante imaginário] escreveu que

As melhores cidades / como os melhores amores / são aquelas que não existem.
Eu sonho com Qarshi / cidade-do-meu-sonho / que foi e será / sempre.

e que como todo bom poema serve de argumento, sem importância a essa bobice que denominam realidade.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

15 de Outubro

A dúvida de Lênin

A múmia de Lênin [ou talvez o próprio Lênin] visitou Amhitar hoje em 1923. [São controvertidas as opiniões. Uma enquete de 1980 da Universidade de Dacca contabilizou os especialistas divididos em incríveis 50% a 50% - uns achando que Lênin veio, os outros que apareceu apenas sua taxidermia].

Quem [ou o que] tenha vindo, não se tratou exatamente de uma visita. A cabeça do Chefe apareceu pela janela do vagão especial do trem da Ferrovia Trans-Turquestão, a qual para a visita tinha sido renomeada Caminho de Ferro da Revolução e [o novo nome tendo sido reprovado] mudada para o inevitável Ferrovia do Grande Camarada Ulianov-Lênin.

Não saudou a multidão. Testemunhas [na verdade bem poucas] alegaram ter visto a barbicha grisalha, o olhar de vidro fixo à frente [fixo no Futuro da Revolução] disse o artigo de fundo do Pravda da semana seguinte, reproduzido no Voz do Proletariado Vitorioso, o jornal oficial do Partido no País.

A dúvida [compreensivelmente só discutida décadas depois] vem de saber se o Patriarca ainda estava vivo naquele momento. [As enciclopédias afirmam que não duraria muito, morrendo no janeiro seguinte]. Alguém pode ter encenado uma farsa para retardar o anúncio à população.

Duas testemunhas [não sem alguma ousadia] afirmaram que ele lhes pareceu de um infinito cansaço, mais do que físico. E uma delas acrescentou que viu o Chefe quase piscar o olho, um piscar melancólico de quem diz Afinal, não sei se eu estava certo.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

14 de Outubro

O livro das Coisas Comuns

As Recordações de um Tempo que passou e que no entanto Volta  invadiu as 14 livrarias de  Shamaakhaat no dia 14 de outubro de 1904, e as 1.400 páginas dessa obra, é claro, não deixaram de ocasionar o seu fracasso, tendo vendido apenas 14 exemplares no lançamento, o qual começou pontualmente às 14 horas. [Tais coincidências não deixaram de trazer um charme quase cabalístico a tal obra].

Que, de resto, carecia de charme. Nigora Jalodhin [o sorumbático autor] conseguia [disse a crítica] preencher trinta páginas apenas com o ato de acordar [na verdade são apenas vinte e sete páginas e meia, mas fofocas não são precisas]. De fato não são incomuns [na obra] sentenças como

...abri os olhos. E meu olhar, percorrendo a penumbra do quarto de hotel (o pequeno quarto de hotel no qual, atormentado por uma tarde de poeira e mosquitos, decidira passar a noite) encontrava grandes e pequenos obstáculos: um armador de redes, uma cortina com delicados padrões chineses, as figuras de meus tios, meu pai e minha mãe (ou assim me pareciam as sombras que um pífia vela projetava no teto bege)...

E assim percorrem as outras 1394 páginas. Desnecessário dizer que Nigora morreu romanticamente sozinho e asmático, e que depois fizeram bustos e [péssimos] quadros dele. Os elogiadores não viram que, na linha 14.444 de sua obra, Nigora registrara Pouco me importa ser compreendido pelos néscios. E mais esta coincidência numérica também não deixou de ser explorada.

domingo, 13 de outubro de 2013

13 de Outubro

O Dia da Princesa

Anastácia, a princesa esquecida não permaneceu esquecida por muito. Ao menos não em Amhitar, onde uma versão de que fugiu com seu irmão menor [logo após o fuzilamento da família em 1918] logo foi abandonada em favor de outras. [Possivelmente a presença de um personagem de pouco apelo dramático (o irmão) não ajudava em nada – dizem os eternos negadores das histórias interessantes].

A partir da fuga [e de sua chegada ao território amhitariano] a história se parte em dezenas: em algumas versões a jovem princesa se tornou guerrilheira, lutando contra a opressão que engolira sua família [e a falta de qualquer evidência sustentadora tornou tal caminho tão esquecido quanto a princesa]. Também existem [de maneira pouco surpreendente] as versões românticas de que um poderoso [e esbelto e belo e jovem] Arquiduque se apaixonou por ela, e que ela oculta dele a sua origem principesca, pois quer ser amada por suas virtudes, e não por sua riqueza.

Uma pequena variação da versão romântica inclui uma Anastácia Pirata nos Sete Mares [o lenço de seda vermelha a realçar os olhos azuis] e largando dessa vida pelos rogos de um capitão [jovem e belo e rico] que se apaixonara por ela, redimindo-a assim das aventuras.

Nenhuma das versões mais populares inclui uma Anastácia gorda, rabugenta e gritalhona com o marido [um pobre marceneiro] e com as vizinhas na vila. Os eternos céticos dizem que esta é a versão real, mas ela é provavelmente tão fantasiosa quanto as demais.

sábado, 12 de outubro de 2013

12 de Outubro

A transformação na neve

A eterna luta entre os países pelas honras [algumas não tão honrosas] se desdobra também na disputa de saber qual é a verdadeira pátria do Iéti, o Abominável Homem das Neves.

A principal lenha nessa fogueira [uma metáfora inadequada para um homem das neves] jogou-a Tafyeh Ladnik ao divulgar [hoje em 1953] o seu tolamente denominado O Iéti é na verdade um Patrimônio de Amhitar , na verdade um filme [um curta-metragem] há muito desaparecido pela censura e que em doze minutos de celuloide [e nenhuma cena de montanha] prova como historicamente o Abominável foi sequestrado pelos malvados tibetanos, que além de ganharem fama de Pátria Mundial da Serenidade Budista também arrebanharam aquele que poderia ser um símbolo das amhitarianas glórias.

Naturalmente contestado por sua inexperiência alpinística, Tafieh [na verdade um mecânico de moto niveladoras] armou-se de picareta e casaco e partiu para as alturas.

Duas explorações militares e três excursões turísticas lograram vê-lo nos anos seguintes [sempre de longe e sempre com tempestades de neve atrapalhando]. Corpulento que sempre fora, o mecânico agora estava mais. O casaco que levara parecia ter os pelos crescidos [até que obviamente se concluiu que não era o casaco, eram os pelos dele]. Os poucos aldeões em volta da montanha se queixavam de uma ou outra pobre vaca semidevorada. E para se consolarem da perda diziam-se que Tafieh conseguira trazer o Iéti para Amhitar, tornando-se um.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

11 de Outubro

A Caixa de Deus

A terceira dissidência da sétima seita da [estranha] crença da civilização Bakhmar escapou do destino geral das sub-seitas [o esquecimento], e conseguiu tal feito não através de uma superior teologia ou da eficiência miraculosa de suas orações mas através de uma caixa. [A prova maior da sobrevivência ao menos histórica de tal pequena igreja é o fato de que o próprio chefe do governo de ocupação russo [o General Konstantin Petrovich von Kaufmann e seus bigodes de quase-metro] fez questão de oficializar hoje em 1870 o dia de sua relembrança.

De fato este grupo religioso não se destacava por nada a não ser pelo fato de que no centro de seu templo [de resto um feio prédio quadrado de janelas quadradas] se punha uma caixa. Nela [diziam os sábios] se encerrava a Sabedoria do Universo, e o fato de que nem mesmo os sábios se atreviam a levantar a sua tampa informa do respeito [ou temor] que todos lhe tinham.

Fala-se em mil cento e onze versões do que haveria dentro, desde uma previsível luz cegante [Deus itself] até uma água que nunca seca, rosas transparentes e escorpiões [além da inevitável versão cética de que teria as riquezas acumuladas pelos sacerdotes].

Um iníquo guerreiro invasor [as versões variando desde um improvável Napoleão até (um tão improvável quanto) Átila] teria [não sem suma heresia] aberto a caixa. E dentro existiria apenas o vazio.

Tal versão [incensada por alguns] é compreensivelmente pouco difundida.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

10 de Outubro

Absurdo Teatro

As Coisas que Ninguém Nunca Viu e Pensamentos que Ninguém Jamais Teve estreou hoje em 1911 no Teatro de Ópera de Shamaeerkhaant.

Uma criação coletiva [outro ponto que faz exultar os críticos que se derramam por seu aspecto pioneiro] a obra começa com um palco vazio. Três personagens [que ao saírem e voltarem são representados por atores diferentes] fazem a contraposição ao protagonista [que é representado às vezes por um homem ou mulher, ou criança, ou garçom de bar ou contrabandista de óleo]. Três flores de cartolina [que durante a peça são substituídas por outras de pano, de restos de madeira colada ou de pregos fundidos] formam o único cenário.

O protagonista Uelilag [que, como se disse, às vezes torna-se mulher] olha para cima com um canudo de papel e descreve belos livros, lindas casas, corpos femininos e masculinos perfeitos. Naturalmente os outros querem ver aquele Paraíso [que ele se enfurece com a palavra, pois para ele não se trata disso], um deles acaba por tomar o canudo e olhar, e vê falsos paraísos diferentes. Quando os atores estavam inspirados até a plateia entrava na briga e olhava também.

Tinta e tapas se gastaram sobre o sentido da primeira peça de teatro amhitariano que escapou do Vaudeville ele-disse-ela-disse habitual. Para aclamar a discussão, os críticos [ou quase todos] concluem que a fascinação vem de que o tal canudo é só um canal para cada um ver seu paraíso imaginário [que nem Paraíso chega a ser].

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

9 de Outubro

Monótonos heróis

A expedição marítima comandada pelo Almirante Mohira Kobe chegou hoje no ano de 1226 dos hereges e a vagareza de sua entrada no porto [pois, na época, Amhitar possuía litoral] possibilitou que multidões de trinta e uma aldeias próximas se reunissem para saudar os exploradores.

Nas barracas improvisadas [entre asas de frango frito, crianças pulando corda, saltimbancos cuspindo fogo e vovôs enxugando baldes de cerveja] se especulava o que os bravos marinheiros teriam visto: homens de três braços [ou cinco pernas]; areias macias como nuvens, nas quais se tem um sono celestial; tribos que se vestem de ossos de caranguejo e que comem apenas filé de escorpião gigante; cachoeiras tão grandes que não se via seu topo.

Entraram os navios.

Pressionados por histórias de pigmeus e dragões, no começo contaram o que se esperava deles, depois caíram em contradição e explicaram: a viagem fora de água, água e água em tempestade, mas em geral em enervante mesmice. Quando encontravam pessoas, eles se vestiam com uma ou outra peça diferente, ou tinham um nariz talvez um pouco mais chato ou longo, mas, no geral, eram iguais. O Almirante concluiu suas breves palavras dizendo que, reais aventuras, que as procurassem em casa, ou elas não existiam mesmo.

O caráter decepcionante de suas palavras fez com que tal data fosse por muito esquecida, e só o esforço de poetas românticos [que evidentemente embelezaram muito a história] garantiram sua entrada nestas efemérides.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

8 de Outubro

Gêmeos

O historiador romântico francês Jules Michelet detestava os romanos e o igualmente historiador e igualmente romântico Dilafruz Michelet os odiava triplamente. [Não se trata de coincidência: o amhitariano tomou o nome do francês, de tanta admiração (história esta celebrada a 8 de maio)]. Por isso Dilafruz [como o faria Jules se conhecesse Amhitar] detestava a história dos gêmeos.

Os irmãos Shalo e Shahzoda nasceram [previsivelmente] em uma floresta. Como geralmente acontece nesses casos, seus pais sumiram logo no começo, de alguma forma que não vale a pena narrar. Amamentados [sem nenhuma surpresa] por uma loba, uma ursa os criou [o que também não representa novidade].

Escolhidos por Deus e ou pelos deuses [a história não se dá ao trabalho de definir exatamente quais] receberam a incumbência de fundar uma cidade, a qual [profetizou algum profeta típico dessas lendas] governaria o Mundo. [O fato de Amhitar nunca ter governado nem a vizinhança  não é levado em consideração].

Dilafruz detestava essa história não por que fosse um plágio [na verdade, uma das poucas coisas seguras na história de Amhitar são os rolos de pele de carneiro da primeira versão dessa história, com idade confirmada com testes de carbono 14]. Mas porque se assemelhava à história de Rômulo e Remo, os míticos fundadores de Roma [embora fosse anterior]. Em um rompante pouco científico, na catadupa de argumentos contra essa história, o escritor afirmava que leite de loba deve ser insuportável!

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

7 de Outubro

O Homem Sábio

O nome [até excessivamente Oriental] de Ching-Zang-Li, os olhos amendoados e a pele que parecia ter a cor do sol poente [além de duas dúzias de provérbios que ninguém entendia, dizem os críticos] ajudaram o homem que bateu hoje no ano de 777 às portas da capital [160 da  Hégira; menos 888 no ilógico calendário Khazyr] a engolfar o país com a cultura oriental. [O fato de que esta data é mais venerada que 10 de julho, a [pouco provável mas ainda assim lembrada] vinda de Confúcio e mesmo 9 de agosto [a (compreensivelmente) enigmática vinda do enigmático Sidarta Gautama] mostra como aquele mestre [ou farsante, continuam os eternos detratores] causou turbulência indelével no país.

Ching-Zang-Li falava coisas como A Folha Seca que Cai é Como o Sorriso da Montanha ao Sol Poente. Ninguém entendia nada [ranzinzam seus inimigos] mas exatamente por isso achavam que atrás daquilo deveria ter algo. Isso e mais uns golpes de caratê [que surpreendentemente aplicava apesar de se dizer da paz] garantiram sua popularidade e festivais que a cada ano se repetem com imitações de dragões chineses pelas ruas de Amhitar.

Inevitavelmente chegaram notícias de que se chamava Sung-Clai, que era mestiço de chinês com polinésio e que não fora o Sol da Sabedoria [como alegava] que o expulsara da China e sim uma ordem de prisão como falsificador de moedas. Para tristeza das outras religiões, seus adeptos ameaçaram com bastonadas quem repetisse isso, e seu culto continua forte e firme.

domingo, 6 de outubro de 2013

6 de Outubro

Dia do Dilúvio

Por 40 dias e 39 noites choveu em Amhitar e a Terra não inundou [ao contrário do que acontece em certo livro (pretensamente) profético concorrente oriundo do Oriente Médio]. A ausência do dantesco espetáculo de corpos boiando leva os devotos amhitarianos a considerarem o País como a verdadeira Terra Abençoada.

Tal visão nacionalista [comemorada sem razão aparente a todo dia 6 de outubro] colhe apoios [previsíveis] dos historiadores românticos como Dilafruz Michelet e Java Kharlilah, mas também surpresas, como o do marxista Serguei Kovinev. Este último [fiel a sua formação de geógrafo] afirma [no opúsculo Se existiu um Noé, ele foi amhitariano] que as condições objetivas e luta de classes tudo determinam, e um dilúvio [que ele cautelosamente qualifica como “possível”] teria sido escoado pelos rios e a condição morfológica peculiar do país.

Essa e outras explicações foram abaladas com a palestra [em 1940] do engenheiro Stephen Dilobar [cujo triste destino é rememorado nestas Efemérides a 5 de março]. Disse ele que o Dilúvio Universal pode ter existido. Mas que um bom sistema de esgotamento de águas pluviais fez com que as águas enviadas por Deus simplesmente saíssem pelo esgoto, esvaindo-se assim o poder da Fúria Divina.

Tal explicação, se [previsivelmente] agradou aos materialistas, por outro lado também deu combustível ao patriotismo, pois, se em todo o mundo o dilúvio triunfou, o caso amhitariano prova [mais uma vez] a superioridade nacional.

sábado, 5 de outubro de 2013

5 de Outubro

Tema do traidor, só

19 agentes da Jaghon [a polícia política] queimaram hoje [em 1959], começando às 19 horas e 19 minutos, os 1.900 exemplares já impressos da Biografia do Falso Renegado Nasserit Kamola e essas coincidências não deixaram de excitar interpretações místicas, já que Nasserit morreu com 19 anos e 19 dias, ninguém sabe se suicidado.

O livro [conhecido deste então sob o dramático nome de Biografia Proibida] relata a vida do homem que a história considerou como o avesso do herói nacional Donyhor al-Temurbek [a grandeza do segundo contrastando com  a baixeza do primeiro]. A obra principia [desafiadoramente] com uma frase do herói: Olhei-me no espelho, e vi lá vi Nasserit.

Nasserit passou para a história como traidor. E como todo do gênero [Judas a Jesus, Brutus a César e até Calabar a certo longínquo país inexistente] fez o que era do script: fingiu-se amigo do herói e o vendeu.
O livro [de autor compreensivelmente anônimo] afirma que foram os próprios tempos [em si traidores] que fizeram Nasserit. O lado patriótico não era santo. Nem o Inimigo era demônio. Temurbek enjoava, tinha dores de barriga ao comer carne de porco e pensou por três vezes [o número é significativo] em passar para o inimigo, e não é certo que não tenha passado.

Certa derrota em pequena batalha precisava de um culpado. O lado patriota escolheu a ele.

O livro terminava com a frase A Verdade é uma criação dos mentirosos. O Partido tomou isso como algo pessoal e determinou a queima.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

4 de Outubro

O Encontro da Farra

A Conferência Internacional de Shmarkhant nunca aconteceu, dizem metade dos críticos, furiosamente contestados pela outra metade, os quais dizem quesim, e seu dia final foi hoje em 1963.

Teria ocorrido assim: em um [raríssimo] rompante de preocupação adulta, John Fitzgerald Kennedy tomou o fone vermelho e ligou para Nikita Kruschev. Disse que guerras eram barulhentas, além de aborrecidas. Queria se encontrar cara a cara, lugar discreto, e resolver quaisquer motivos de briga. O lugar escolhido foi Amhitar.

E lá chegaram os dois potentados – em segredo – cada um apenas com um tradutor, um cozinheiro e um soldado. O bonitão estadunidense ofereceu Moët & Chandon para o balofo russo, que retorquiu com vodca da Ucrânia e a partir desse ponto as opiniões se dividem.

Uma parte afirma que os dois governantes concluíram um sério acordo, o que impediu uma guerra nuclear.
Outro setor assevera que depois da sétima mistura de álcool e charutos cubanos [dos quais John trouxera quilos e Kruschev tinha mais], os temas variaram entre Se a Marilyn era aquilo tudo mesmo sem roupa [curiosidade do russo] e se as russas tinham a temperatura erótica inversa à da Sibéria [pergunta do outro]. E encerraram a conferência, uma boa conversa entre machos.

Por pouco provável que seja esta versão, conta a seu favor com o fato de que viram uma lágrima no rosto de Kruschev três semanas depois, quando John foi assassinado. Ao puxar o lenço disse que era um bom companheiro de farra.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

3 de Outubro

O cavalheiro

Monsieur Charles Swann [cabelos louros, olhos azuis e gravata borboleta] pisou com seus sapatos parisienses de camurça a piçarra amhitariana e infelizmente o único papel que poderia documentar esse feito perdeu-se [dizem três testemunhas de confiabilidade variada] hoje em 1923 num pequeno quarto em sobrado do Boulevard Saint-Germain, quando sobrinhas distantes de Marcel Proust [que havia pouco dera o passo para a Eternidade] queimaram o oitavo volume da Busca do Tempo Perdido. [Parece uma sina que escritores tenham sobrinhas distantes que pipocam do nada para queimar parte de suas obras logo depois de sua morte].

Charles Swann [cansado de Paris, cansado dos jogos de gato-e-rato (ou gato-e-sapato) que Odete fazia com ele] um dia saiu da Gare de Montparnasse e [muitos trens depois] desceu na estação central de Amhitar. Procurava exotismos e os encontrou: comeu guisado de Nujmiz, uma pequena barata com gosto de frango frito; viu o sol através do pó do deserto, que o faz cor-de-rosa; atravessou a pé o Syr-Daria, o único rio que em três quilômetros de largura permite que um quase-bebê o atravesse sem se afogar, de tão raso.

No entanto a barata, o sol, o rio e tudo lembravam a ela. Enviou-lhe telegrama e esperou uma resposta do tipo Amor da minha Vida, e esta seria a certeza de que ela o amava, e poderia curtir as férias tranquilo.

Veio a mensagem Amor da minha Vida e isso o fez tremer de pavor e correr de volta ao Sena, pois poderia perder tudo mas não Odete.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

2 de Outubro

A Profecia sem charme

A Grande Revelação Divina do Subprofeta Royinod Abisan [também festejado a 4 de agosto] inflou imaginações e a vendagem de livros místicos durante meio século [ou sete vezes esse período, ou mais] e [compreensivelmente] se viu mais turbinada ainda pela descoberta [no dia de hoje em 1901] de que tal poderosíssima profecia não era uma e sim três. [Em verdade as escavações que levaram à descoberta nada tinham a ver com a Busca da Verdade, e sim visavam a consertar um vazamento na adutora de esgoto da cidade de Kyzyl Kum. Por ser considerada pouco honrosa (assim como malcheirosa) esta verdade foi suplantada pela versão de que uma Luz Púrpura no Céu orientou um grupo de buscadores da sabedoria].

Quanto às profecias, cometiam o pecado duplo da verdade e da banalidade. A primeira delas dizia que As Guerras existirão ainda por muito tempo, e os homens deveriam deixar de fazê-las, profecia não só real como embaraçosa, pois lembrava a humana inação; a segunda [oculta em sete rolos de couro, o que acentuou ainda mais um possível caráter sagrado] afirmava que Aquele que come e bebe demais pode sofrer problemas de saúde [outra verdade chatinha]; a terceira estabelecia que Um dia essas profecias serão encontradas por aqueles que metem a mão no excremento - e esta última, a um só tempo veraz e inestética, fez com que o prestígio de Royinod logo rastejasse no pó [confirmando a assertiva de que os homens preferem a mentira charmosa à verdade sem graça].

terça-feira, 1 de outubro de 2013

1 de Outubro

A Chave-Harpa

Três casaizinhos [em camping] descobriram a Harpa no dia 1 de outubro de 1959. Na verdade não o era, mas uma rocha que imitava o instrumento, de maneira [quase] tão perfeita que gerou discussões sobre se era produto de algum escultor ou da erosão de [talvez] milênios. Isso seria só curiosidade, no entanto, se em uma parede pedregosa ao lado não estivesse escrito a frase

A Harpa criou este lugar, e ela o destruirá

E nem isso seria assim tão inédito se a frase estivesse vertida em algum dialeto que algum especialista traduzisse, mas ela se encontrava em nove línguas [além dos dialetos Khazyr e Bakhmar], e entre elas linguagens como o inglês e o francês, além da língua de certo país grande e obscuro de certa América no Sul.

Choveram explicações, as mais populares sendo as de que OVNIs, Anjos e Diabos escreveram aquilo, na ordem. [Isso explicaria o conhecimento poliglota]. Além de especulações se o Lugar mencionado era o bosque, a cidade ou o Planeta [essa última explicação reavivou-se com a onda ecológica e o temor do fim de tudo pelo Aquecimento Global].

Uma explicação de que a Harpa de Pedra representava a chave para outra dimensão de Tempo e Espaço foi [não sem melancolia] destroçada pelos rapazes, que revelaram que, rejeitados pelas moças, escreveram bobagens [que aprendiam no curso de línguas] ao lado da pedra estranha.

Naturalmente ainda hoje há os que procuram passar a outra dimensão através da Harpa, talvez sem muito sucesso.