sábado, 30 de novembro de 2013

30 de Novembro

Monótonos Maçonicos

There is no such thing as an Amhitarian Freemasonry. Sir William James Hughan [casaca, luvas e cartola com forro de cachemira] pronunciou estas palavras [não sem amargura] diante da Grande Loja de Londres hoje em 1899.

Para os maçons, a maçonaria começou com certo Hiram em certo Oriente Médio [para os opositores, são ambos fictícios]. Para o orgulho amhitariano trata-se de genealogia falsa pois a maçonaria [não surpreendentemente] teria começado no país. [Tal honra (considerada fantasiosa no resto do mundo) é ainda hoje objeto de periódicas homenagens do governo e da oposição guerrilheira].

Esse rumor trouxe o inglês coautor do massudo A História da Franco-maçonaria, o Rito Escocês Antigo e Aceito e a Real Ordem da Escócia. Hughan descobriu que efetivamente havia lojas em Amhitar. E que elas muito possivelmente não vinham de raiz europeia. No entanto a maçonaria se agrada nos seus rituais [no mistério e nos compassos]. Quanto à maçonaria amhitariana, nela não havia nada. Os irmãos se reuniam com a euforia de quem vai fazer exame de sangue e com o mesmo misticismo de um almoxarifado de cartório. Quando se enfileiraram para receber um copo d´água o inglês chegou a pensar em algum Rito Aquático. Mas é que estavam com sede mesmo.

Concluiu que a banalidade é inimiga dos Irmãos, e pronunciou o discurso que transformou a Ordem amhitariana em pária entre as Lojas do mundo, o discurso que [inexplicavelmente] entrou na lista de comemorações do país.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

29 de Novembro

Para o Céu

E Utkirbek Lennon, às vinte horas e trinta e seis minutos do dia de hoje do ano da graça de 1976 [do calendário herege] viu, observou, sentiu e até percorreu uns bons milhares de quilômetros de uma Escada para o Céu. [As acusações de plágio a certa de banda de rock são indevidas, pois, no momento, Utkirbek jura que não lembrava a canção Stairway to Heaven – como, aliás, costumava esquecer muita coisa].

Ao primeiro [e talvez único autêntico] hippie de Amhitar não se pode assestar as acusações de estar além de Bagdá – pois, significativamente, a aparição se deu quando Utkirbek [tomado de certa iluminação pós-Budista] decidira que o caminho para o Nirvana era a água – e havia já uns bons três meses não ingeria nada que não fosse inócuo, insípido e inodoro.

A Escada não lhe apareceu no meio do deserto – sendo de resto difícil dizer onde lhe apareceu, já que o profeta da contracultura às vezes se jurava no Polo Norte para descobrir que se encontrava em uma quitinete infecta em Calcutá. Não se parecia com nenhum delírio habitual de escada, pois, para começar, tinha corrimãos [onde já se viu escada mística com banais corrimãos?]. Anjos não o seguiram. Nenhuma bela garota o esperava no alto. Uma capa de nuvens impediu logo a visão da paisagem abaixo. A aventura terminou melancolicamente, com ele voltando por puro tédio daquela aventura chata.

Utkirbek concluiu então que A Água causa perigosos delírios – e voltou à conhecida química de sempre.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

28 de Novembro

O cheiro do Comum Lugar

O país não se orgulha de sua indústria perfumista [o que não deixa de surpreender, já que os patriotas amhitarianos (dizem os vizinhos Kazaks) se orgulham de (quase) tudo]. De fato, excetuando um opúsculo [depois renegado] do historiador Java Khalilah e duas notas pagas da Academia do Delírio publicadas hoje em 1906, nada se pode encontrar sobre as fábricas de odores em Amhitar.

O conformismo [ou um compreensível horror a ele] explicam tudo [é o que dizem]. A indústria perfumista [em todo o mundo] busca uma radical transformação do lugar-comum: cheira-se o que não se cheiraria normalmente – em um escritório ou em uma festa familiar desprovida de qualquer vestígio de graça podem vir à tona [através de alguma essência importada] flores de picos de montanhas da China ou de folhas que só possuem aquele odor na beira de certo lago na Tanzânia.

Em Amhitar [ao contrário] os perfumes encarnam o dia a dia: pequenas flores de terrenos baldios [não exatamente prodígios de cor e forma] são maceradas e usadas por pessoas que moram ao lado dos tais terrenos. [As ervas daninhas têm o mesmo destino e aplicação].

Dizem até que alguém [para escândalo dos puristas] transformou o suor em perfume [embora o olvido e a vergonha sufoquem esse assunto]. A indústria perfumista nacional talvez por esse motivo [exceto por três laboratórios artesanais nos subúrbios de Smaarkhaat] sumiu – pois ninguém [dizem] quer ter o odor da banalidade.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

27 de Novembro

A Fundação

Vigorosa contestação derrubou a tese da inexistência das Brigadas Libertadoras Lembranças Afetuosas ao Grande Donyhor al-Temurbek [para alívio dos patriotas]. Resta a doutrina da inexistência de uma História desse grupo. Não porque nunca tenha feito nada [embora isso seja real, dizem os eternos ironistas] mas porque a sinuosidade [ou a falta de sentido] de sua trajetória [se é que se pode falar de tal] tornaria impossível escrever-lhe uma narrativa, tão a gosto dos compêndios escolares e das biografias pop.

O grupo guerrilheiro com o nome mais longo do Planeta teria sido fundado hoje, e a escolha da data [feita de maneira arbitrária no III Congresso da Academia Soviético-Proletária da Ásia Central em 1936] revela o desconhecimento [ou a multiplicidade de versões] que o cercam. [A data de hoje era só uma das 125 prováveis]. O ano 1777 acabou sendo escolhido [o que gerou suspeitas não totalmente infundadas, pois Serguei Kovinev (o Manda-Chuva da Academia) era (de forma inexplicável) fanático pelo número sete].

Resta o problema de como se formou tal guerrilha. As versões mais comuns [não sem banalidade] apostam nas montanhas habituais, com um grupo jurando morrer antes de se render [outras mencionam um porão urbano]. A narração mais poética [saída em nota sem autor na Gazeta de Amhitar no último dia de 1919] afirma que no grupo só havia os 1.007 avatares de Temurbek, e a reunião se deu no Céu. Tal versão [surpreendentemente] não é desprovida de adeptos. 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

26 de Novembro

O Impopular

Ninguém nasce nem morre só – diz o ditado amhitariano. Esta tradição seria quebrada [não sem impiedade] hoje em 1841, quando Feruza Otabek deu sua entrada no cemitério além-dos-muros da capital Shmaerkhaent. Dois testemunhos afirmam que, além dos funcionários do cemitério, um cãozinho Lulu marcou presença na rápida cerimônia.

Feruza [o feroz panfletista Feruza] não deixou de dar razões que [se não justificam] ao menos tornam menos incompreensível seu pequeno nível de amigos. Era sincero – até os adversários o reconheciam. Porém o Homem Mais Impopular do País [e não desgostava do apelido] parecia procurar motivos que aumentassem ainda mais a fama.

Inimigo do álcool numa terra de fanáticos da cerveja preta [a festejada Shiibatz], pacifista quando todos se orgulhavam de um tio-avô degolador, vegetariano no país que alegava ter criado o churrasco de iaque, adepto dos namoros castos quando o prêmio de toda família era ter um filho Don Juan, não havia movimento impopular que o jornalista não abraçasse. [Curiosamente o nacionalismo e o liberalismo contra os paxás opressores, causas que (embora perigosas) não deixavam de arrastar multidões ocultas, nunca lhe fizeram a cabeça]. Feruza acostumou-se a andar sozinho na rua [exceto pelos garotos que o vaiavam].

Como tudo, da sua morte há uma visão revisionista: o cachorrinho seria a alma do povo, arrependido de tanta incompreensão. Embora bela e nobre, tal [piedosa] versão só é aceita em círculos mais espirituais.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

25 de Novembro

O Cientista

A Ciência [e também (dizem) o chauvinismo amhitariano] implantou no país um antecessor injustiçado: Kyndal Shavkat, o Lavoisier de Amhitar. [Os verdadeiros patriotas detestam isso – Lavoisier é que seria o Kyndal da França].

O cientista pulou para o anedotário: a [esperável] juba de cabelos brancos, a barba a qual [dizem] enrolava para que não entrasse nos tubos de ensaio. A sua principal contribuição [estabelecida sem nenhuma base factual como tendo sido feita hoje em 1698] foi modificar a visão da química amhitariana. Antes, velhos sábios [eles sempre existem] escreveram [em pedra] a fixidez absoluta de todos os elementos. Nada mudava [e a visão de um Heráclito de que Tudo Muda para eles teria soado absurda]. Tal [antiga] visão gerava não poucos problemas principalmente de ordem linguística: durante séculos o poder científico [com sucesso limitado] lutou para que as palavras pedra e areia fossem uma só [já que a areia seria só pedra moída].

Kyndal levou [não sem algum exagero] a questão para o polo oposto: tudo muda, e ao mudar, nada tem em comum não só com o que foi mas com os demais. O químico [como os demais amhitarianos] tinha horror à ideia de infinito, por isso advogava que o número de elementos químicos correspondia ao número de coisas que vemos e sentimos: assim, uma pedra branca é um elemento, uma pedra preta é outro. Embora não deixe de conter sua verdade, tal conceito obteve pouco sucesso mundial e o Cientista só é celebrado em Amhitar.

domingo, 24 de novembro de 2013

24 de Novembro

Romance comum-lugar

Ninguém é Inocente nessa História Toda – Shahzoda Umarkan [tido por alguns (mas não por tantos assim) como o maior romancista amhitariano] escreveu esta frase [não destituída de dramaticidade banal] na primeira página de seu décimo-sétimo romance [sendo os outros 16 hoje raridades (não necessariamente preciosidades) bibliográficas e o publicou hoje em 1901].

Um dos [re]fundadores da Academia do Delírio [nestas Efemérides a 17 de outubro] mistérios cercam a vida de Shahzoda [ou ele os criou], a começar da mudança de seu nome de Utkirbek Shahzoda para o de Shahzoda Umarkan, atribuída alternadamente a uma tola superstição numerológica ou a uma desavença com o avô. Mais importante [no entanto] é sua descrença em qualquer literatura, a qual evoluiu [dizem não poucos] para uma descrença em tudo, até na própria descrença – sendo o significado de tal coisa ainda hoje objeto de monografias.

Ninguém é Inocente nessa História Toda sugere desde um drama policial [com as tolices típicas do mesmo] à la Agatha Christie ou Khannat Nurayan [celebrado a 17 de setembro] mas não o é. Nem um drama existencialista indutor de depressões. Sua história da luta [afinal bem-sucedida] de um viúvo para sustentar os filhos [pelo contrário] não se afasta demasiado do lugar-comum.

Dizem os fãs que a aparente incongruência entre os bons personagens e o título soturno revela que a maldade existe, mesmo na bondade. Os [inevitáveis] opositores dizem que foi erro do autor, mesmo.

sábado, 23 de novembro de 2013

23 de Novembro

Herói talvez

Morrer jovem e herói; ou viver o suficiente para se descobrir canalha

- Abdullaeva Behruz [não sem dificuldade] traduziu este dístico [vertido em versão samoiedo-basca do nono subdialeto Bakhmar, com sílabas do japonês arcaico]. [Sendo (no entanto) exageradas as versões de que o linguista amhitariano tenha partido para o grande campo glotológico celeste por causa deste esforço].

Na verdade o homem que sabia 7.777 línguas [Abdullaeva, em estimativa talvez excessivamente otimista] já traduzira escritas mais difíceis. O que causa a celeuma deste pequeno trecho é a sua falta de base material – pois não quedaram registros do papel ou pedra na qual foi escrita. E [como consequência] essa imaterialidade permite especulações.

Que nada teriam de importante se não fosse o conteúdo da mensagem. Trata-se [à primeira vista] de invectiva contra a idade provecta – pois [segundo o escrito] é melhor morrer jovem e puro. À segunda vista [no entanto] trata-se crítica à juventude, pois debaixo de cada jovem se esconderia um malvado – precisando apenas de tempo para se desenvolver.


Suspeita-se [e sempre há quem levante suspeitas negativas] que um idoso, tido como sublime, e sabendo-se uma farsa, deixou escrita essa quase confissão. O grande herói amhitariano Donyhor al-Temurbek teria escrito tal frase – e interesses óbvios negaram que fosse dele. Os mesmos que apagaram outro dístico, no qual assumia a autoria do primeiro – mas a existência deste é mera especulação.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

22 de Novembro

Cidade Perdida

O Gato Transparente [o símbolo] e o dístico A mentira possui o seu próprio encanto encimavam a portada de pedra da cidade perdida de Terebazar. Tais afirmações [é claro] não podem ser comprovadas pois [além do Gato] toda a cidade era transparente e [segundo não poucos] não o dístico mas toda a cidade era mentira. [O fato de a cidade ser hoje perdida (de acordo com os cínicos) constitui conveniente desculpa para o seu nunca-ter-sido].

Escavações empreendidas pela Seção de Propaganda Arqueológica do Partido [cujo excesso de surrealismo logo a fez extinta] na beira de dois ou três afluentes do Lago Sarygamysh resultaram em um fracasso incomum [pois os pesquisadores sempre encontram alguns ridículos cacos de cerâmica ou pontas de flecha]. As pesquisas [encerradas melancolicamente hoje em 1951] resultaram [literalmente] em poeira.

Curiosamente isso só aumentou o interesse quanto à cidade perdida. Não seria perdida por uma banal capa de areia – mas porque ela, cidade [ou pretensos feiticeiros que a construíram] se fizera com a habilidade de esconder suas belezas.

Para alguns os Gatos seriam não um mas 177; os feiticeiros controlavam o tempo e mandavam furacões sobre os inimigos; uma versão popular afirma ser ela uma cidade de amor livre e cujas habitantes femininas eram todas jovens e de cintura menor que 62.

Livre dos constrangimentos do real, uma contagem em 1987 recenseou 10.917 livros e artigos [só em Amhitar] sobre a Cidade Perdida. E no aumento.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

21 de Novembro

O Esquecedor

O Destino [cuja existência é objeto de debate] devolveu o dom da memória hoje em 1866 a Sunef Muniza O Olvidador, e este fato [dizem não sem dramaticidade] constituiu a [única porém definitiva] tragédia de sua vida.

Sunef esquecia. Na infância isso lhe causou surras – quando entrava em portas de outras famílias [pois esquecia a própria casa] ou balbuciava como bebê [pois esquecia a linguagem]. As surras [é verdade] não faziam efeito pois ele não as lembrava.

Tratada alternadamente como possessão ou doença, a sua característica [pois acabou por tomar esse nome asséptico] evoluiu para certa lógica. Sunef não olvidava tudo. Podia perder-se por horas [até algum conhecido o encontrar] mas à sua mente vinha o prazer que tivera do primeiro banho de bica d´água, com cinco meses, dezessete dias e nove minutos [e era ele quem lembrava esta tão precisa data].

Não poucos perceberam que para ele o tempo patinava: com 17 anos parecia ter 12, e com 51 semelhava 30. A explicação óbvia – Sunef vivia em um Paraíso particular, não porque coisas más não ocorressem com ele mas porque ele as esquecia. [Até hoje se discute se tinha algum controle sobre sua amnésia ou se a mesma era um dom natural].

Discute-se a irrelevância de saber como Sunef recuperou sua memória, e as versões vão desde clarão dos céus até bordoada. Daquele momento em diante [no entanto] começou a envelhecer e se tornou um homem comum. [Só o Sunef desmemoriado se celebra nestas Efemérides].

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

20 de Novembro

Da Seita

Uma Plenária da Academia Soviético-Proletária da Ásia Central hoje em 1939 refutou a tese [já um tanto desacreditada] da inexistência dos Khazyr. [O Geógrafo Serguei Kovinev fez a parte mais consistente da defesa da velha seita mística, o que não deixa de ser surpreendente para um ateu convicto e partidário do progresso material dos povos].

Os românticos [meio século antes] advogaram que o grupo social que povoou as regiões central e sul do platô amhitariano não passava de lenda. Seus argumentos [no entanto] muito tinham de emocional e pouco de arqueológico. Um deles [não o mais consistente porém talvez o mais popular] tomava a frase [atribuída aos sacerdotes Khazyr]

Há muitos deuses – uns são possíveis, outros não

como um exemplo da tolice da teologia da seita [pois negava a própria essência do teísmo]. Kovinev explicou a contestação romântica afirmando ser compreensível a revolta idealista diante de um grupo social que, apesar de ter crença, possuía-a de forma racional, quase materialista.

A Academia do Passado Inexistente [de maneira compreensível e pós-moderna] trouxe a velha seita de volta. Os muitos deuses dos velhos mestres seriam na verdade os Paradigmas [uma palavra odiosa para os pós-vanguardistas amhitarianos] os quais existiriam para ser quebrados. Um subgrupo mais radical diz que os Khazyr se referiam na verdade a Nada – e esse combate a deuses sem relevância os tornaria eternos – embora discutam se a eternidade tenha grande importância.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

19 de Novembro

Da guerra de sempre

Durante 999 anos Amhitar combateu os Bárbaros [e a simetria do número não deixa de causar suspeitas]. Não que esse combate fosse contínuo: não foram poucos os decênios [ou séculos] em que paxás e xeques sequer se referissem aos Gulkahyos [assim eram chamados], para que logo depois surgissem como ameaça. Casamatas eram construídas, soldados eram convocados, manobras se faziam, sentinelas desabavam de sono nas ameias – e os Bárbaros [ou a presença deles nos discursos] sumia.

Antes de sumirem [no entanto] tropas retornavam de alguma batalha a dois mil quilômetros com bandeiras inimigas [na verdade trapos que alguns (sem coragem de dizê-lo) assemelhavam a estopas]. As histórias de massacres e estupros do cruel inimigo e da vitória final de nossas tropas ocorriam não sem certa monotonia.

A oposição [sempre há uma] é brutal: os Bárbaros não existiam. Sua finalidade única era promover generais e enriquecer empreiteiros de fortes e estradas. A própria estupidez do nome seria prova: Gulkahyo [no quinto subdialeto Khazyr] significaria Os que chocam galinhas.

Os patriotas contestam: para eles a aparente tolice de tal nome é mais uma prova, pois Bárbaros são estranhos, e nada mais estranho que chocar uma galinha ao invés de um ovo [como acontece nos países civilizados].

Esse argumento [de maneira não de todo injustificada] é tido por pouco convincente.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

18 de Novembro

Não aos versos sim à liberdade

- Não quero contar histórias. Prefiro salvar o Mundo!

Jasur Akmal subiu os sete degraus para a tribuna [com seu discurso sobre técnicas de fazer versos] e tudo lhe pareceu tolo. Fez voar a papelada e berrou.

Não o Mundo mas o teto do Teatro quase caiu com os assobios, bordoadas nas cadeiras, tabefes, tiros para o ar e até cócegas em vizinhos neste 18 de novembro de 1861 na abertura do Congresso dos Homens de Espírito. A literatura amhitariana [e a música, e tudo o mais] até então tinha sido comportada, ou técnica. Os poetas preocupavam-se com hemistíquios, os romancistas com tramas, os músicos com solfejos.

O discurso do poeta Jasur [que compreensivelmente mudou seu nome para Byron Jasur] mudou tudo isso. Os homens da pena e do teatro só falavam em liberalismo, pátria, democracia, fim da opressão. A invasão russa oito anos depois foi [quase] recebida com alegria, pois as torturas e prisões solitárias na Sibéria imprimiam ainda mais drama à atividade da cultura e valorizavam a vitória final. O que não impediu [quando a ocupação se tornou mais branda] os homens de espírito de continuar se queixando da opressão.

A técnica perdeu – erros de versificação e cantores sem garganta passaram a não ser incomuns. Alguém criticou a cultura amhitariana por ser cheia de boas intenções sem estudo. Certo simpósio de poetas respondeu [não sem fúria] que Não os versos, mas a liberdade é o que importa!

domingo, 17 de novembro de 2013

17 de Novembro

O monotom

Uma capa de nuvens cobria o céu de Amhitar [dando a tudo uma monótona cor cinza-chumbo] no dia em que o mais monótono dos homens visitou o país. Era a data de hoje [dia em que, tirando os aniversários e falecimentos de sempre, nada aconteceu de especial] do monótono ano de 1972 [ano que, excetuando as guerras e massacres de rotina, só provocou bocejos]. A população [sem ter o que fazer naquela monótona sexta, feriado decretado pelo partido] acorreu em não pequeno número para Estação de Trem Triunfo da Revolução [a qual tinha sido rebatizada especialmente para o fato. Como os gráficos do Jornal oficial Voz do Proletariado Vitorioso se esqueceram de publicar o decreto, o novo nome não pegou]. A multidão [na verdade] chegou quase toda em atraso, mas como o trem esperado também retardou, ninguém prestou atenção.

O homem chegou. Sua cara de buldogue parecia não ter cor [assim como os sobretudos que vestia]. Estendeu a mão com a leveza de um guindaste enferrujado e cumprimentou alguns dos membros do comitê local do partido [alguns com jeitão gostaria-de-estar-na-cama]. Dizem algumas testemunhas que até pretendeu ensaiar um sorriso – mas a questão ainda hoje controverte.

Leonid Brejnev veio a Amhitar – inaugurou as cooperativas de sempre, percorreu as metalúrgicas de praxe, cortou fitas dos ramais ferroviários que seriam de esperar, recebeu as flores de costume das crianças de rotina e foi embora.

O regime que representava acabou por cair no sono.

sábado, 16 de novembro de 2013

16 de Novembro

O ídolo

O primeiro astro do cinema amhitariano fez seu début na História não por ser o primeiro [título aliás duvidoso] mas [dizem os eternos dizedores-de-não] por trazer a Amhitar o título [não necessariamente honroso] de casa do primeiro astro teen da era moderna.

Kyndal Bekzod [indiscutivelmente] possuía o tipo físico para isso: idade indefinida [obviamente oscilando entre os treze e os quinze], magrinho, de pele perfeita e olhos de pérolas azuis que faiscavam a um par de milhas, as suas feições quase femininas tornavam incompreensível [para os mais velhos] porque ele invariavelmente destruía os corações das garotas.

A máquina [a famosa máquina] entupiu o país de comerciais dele, desde bicicletas até pó anticaspa, todas com o olhar [supostamente] fatal. O menino era ladeado por antigos guardas do palácio do [destronado] SemiSultão [os precursores dos modernos seguranças] e usava uma faixa na cabeça que ressaltava os cabelos louros [cumprindo função que nos ídolos de um século depois seria realizada pelos óculos escuros].

Kyndal subiu à cabeça: não só o sucesso como também a cerveja shiibatz, da qual [diziam] no final da carreira tomava hectolitros; dezessete grávidas alegaram que o culpado fora ele; e deu para fazer pinturas em muros públicos [inspirando os pichadores hodiernos]. Nisso [dizem os pessimistas eternos] reafirmou mais uma vez o pioneirismo amhitariano – na tolice adolescente. Claro que esta opinião down não é por todos partilhada.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

15 de Novembro

A Cidade esquecida

Khatlon, a Melancólica não o era – ao menos segundo o subsetor antropológico da Academia de Ciências de Amhitar que descobriu seus [surpreendentemente coloridos] resquícios hoje em 1960. Embora a primeira edição da enciclopédia para crianças Maravilhas da Cultura de Nossa Pátria enfatizasse o aspecto jovial da cidade da primeira biblioteca do país, revisões posteriores a retratavam poeirenta, com os habitantes enxugando as lágrimas da monotonia [a tola metáfora é da enciclopédia] nos [poucos] lenços de algodão marrom. [Tal enciclopédia é festejada (embora com duvidoso mérito, dizem) a 12 de agosto nestas Efemérides].

Uma visão revisionista [elas sempre existem] saída em nota sem crédito de autor na terceira página da ressuscitada Gazeta de Amhitar no primeiro dia de 1991 afirmou que um mal-entendido [ou má-intenção] atribuiu à velha urbe uma renitente fama de down. Segundo a nota, a turma que não se interessa por estudo [esta existiu, nos séculos XXI, XX, XIII, Zero e sempre] quis [de maneira sutil mas nem por isso menos efetiva] vingar-se de uma cidade cuja diversão eram as páginas emboloradas de volumes [na verdade os livros de Khatlon eram quase todos rolos de pergaminho, mas You got the idea].

A vingança [embora torpe] funcionou, e as companhias de turismo [ansiosas em oferecer excursões até para a segunda maior bola de fio dental do mundo] não oferecem nenhuma para Khatlon, alegando [sem base científica] que a melancolia é contagiosa.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

14 de Novembro

O Britânico

Os Kazaks [ao leste] e Turkmans [ao sul] atribuem aos amhitarianos uma fama de pouco inteligentes, a que os nativos de Amhitar respondem com uma [compreensível] fúria. Tal fama [no entanto] não veio de gente próxima, mas de certo [chapéu cartola, terno cachemira e nariz de ponta] John Hopley Nelligan.

Os ingleses se espalhavam pelo mundo e este jovem filho de banqueiro falido resolveu espalhar-se por Amhitar [Sir Arthur Conan Doyle na Aventura de Black Peter contou o afogamento de seu pai em tétrica tempestade]. Nada fez de muito extraordinário [nem em Amhitar nem fora dela] a não ser escrever [em capítulos publicados na revista The Strand] umas histórias sobre o país visitado [e o fato de não saber nem uma sombra de dialeto local faz com que (não poucos) suspeitem do caráter ficcional (ou plenamente falso) de suas histórias].

Acusa os amhitarianos de cegos [por não matarem as vacas para comer]; de indecentes [por suas mulheres não usarem espartilhos]; de indolentes [por não investirem em ações da Bond and Share Ltd. (das quase incontáveis Bond and Share Ltd. que os anglos espalharam pelo mundo)] – acusava-os, em suma, de não serem suficientemente ingleses.

A obra [previsivelmente] só fez sucesso entre os vizinhos [e rivais] de Amhitar. Uma nota favorável a ela saiu no Daily Mail, assinada por A C Doyle. Dizem que o próprio Nelligan a fez para se atribuir a aprovação do romancista, mas [não poucos] creem que era tolo demais para tanto.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

13 de Novembro

A Matemática dos povos

Iusya Marzhaffar [previsivelmente ele] principiou os estudos demográficos em Amhitar hoje em 1882, um dia em que nada aconteceu de extraordinário. [E esta acachapante chatice cai bem tanto com o assunto quanto com o autor]. O profeta do aborrecimento [apelido (obviamente) dado pelos seus arqui-inimigos, os românticos] insistia em não acreditar em nenhuma realidade que não fosse visível: Deus é uma ilusão, os Espíritos um saco de tolices, a Honra uma Quimera, e o Amor então nem se fala. [Dizem que chegou a duvidar da eletricidade, a qual (como todas essas coisas, é invisível) mas tal informação não é consensual].

Iusya publicou o seu ensaio A Matemática guia os Povos [na verdade uma conferência tão aborrecida quanto seu título] defendendo a tese de que a quantidade e densidade de população determinam as escolhas dos países. Baseado no estudo do comportamento do mamífero Ebok [existente apenas em Amhitar e (segundo alguns) não existente nem em Amhitar] o autor afirmou que as populações mais rarefeitas [pelo tédio e falta de diversão] tendem a fazer revoltas políticas e migrações [especialmente se açuladas pela falta de alimento, pois, na falta do que fazer, divertem-se comendo]. As populações densas seriam mais quietinhas.

Por contrariar o sendo comum [e as conclusões de certo pastor Malthus] tal estudo tem apenas mérito histórico e os admiradores do autor tentam [não sem paixão] provar que é escrito apócrifo, até agora sem sucesso.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

12 de Novembro

A Monotonia

Paleobibliófilos italianos encontraram hoje em 1968 [encadernados em conjunto com os dois únicos exemplares conhecidos da Cosmographia Christiana de Cosmas o Indicopleustes] os [também] dois únicos sobreviventes [um deles incompleto] do ensaio Da Incrível Monotonia da Virtude, e tudo foi surpreendente em tal descoberta. Em primeiro lugar a sua própria existência: a intensa perseguição a tal livro [que durou (dizem talvez com algum exagero) 199 anos] foi feita para até sua lembrança durar fumaça.

Depois a própria localização dos exemplares: na Biblioteca Vaticana e na Biblioteca Laurenciana de Florença [fato que pode ser explicado pela própria eficiência da censura, que não deixou um só em Amhitar]. E finalmente o fato de terem sido encadernados com um clássico cristão [o que gerou especulações quanto ao seu suposto autor].

Livro sem valor literário, Da Incrível Monotonia... tem sua tese única sintetizada no título. O mal causa o mal, isso é claro [diz o anônimo escritor]. Mas o bem [forçoso é dizê-lo] é chato. Os maus morrem por seus malfeitos, os bons morrem de tédio [e tal universo tipicamente cristão tem levado alguns a apontar o Monge Gelasiminius como o responsável por tais (heréticas) palavras].

Tal ensaio conseguiu juntar contra ele todas as religiões. Certo Xeque [dizem] chegou a encetar uma campanha Faça o bem, o Bem é Divertido. A semelhança com as atuais campanhas publicitárias, no entanto, faz com tal história seja pouco verossímil.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

11 de Novembro

A beberagem

Diante d ´ELE não há ricos nem poderosos, pois diante d ´ELE todos se abatem. Os homens se submetem a seus desígnios, e através deles as mulheres também a Ele são submissas. Os sábios reconhecem Seu Poder [se o Seu Poder não tiver arrojado os sábios ao chão].

ELE na verdade é Ela, a Shiibatz, a cerveja marrom amhitariana.

Amhitar se orgulha de a sua cerveja ser a mais forte do Planeta. Histórias de como o bisonho mercador Eldor, o Intruso espalhou a [visualmente pouco atrativa] beberagem pela Rota de Seda [fato celebrado nestas Efemérides a 20 de janeiro] ainda são contadas ao pé do fogo [antes que a televisão chegasse].

Estudos da Universidade da cidade traidora de Tashkent afirmam ser o teor alcoólico do Shiibatz equivalente a 67 por cento. A divulgação de tais resultados não trouxe popularidade a seus autores, que tiveram de abandonar às pressas o hotel – em parte porque uma coisa é dizer nossa Cerveja é a mais forte do Mundo – e outra é reduzir essa qualidade a uma banal porcentagem, inferior até mesmo a certos tipos de absinto.

Contestações [com tintura científica] afirmam que os estudos ignoram que o Shiibatz é na verdade feito de leite da fêmea do Touro Takhvazz [o que é contestado por outros com o não pouco razoável argumento de que o Takhvazz não existe]. Alguns [não sem certa lógica] afirmam que todas as nações têm algo de que se orgulhar, esse algo é sempre falso ou bobo, e que Amhitar se orgulha de sua Shiibatz. E pronto.

domingo, 10 de novembro de 2013

10 de Novembro

Talvez existentes Bruxos

Não existem sinais de Feiticeiros na história amhitariana e tal fato [de forma não necessariamente paradoxal, segundo seus defensores] constitui a maior prova de que homens de chapéu cônico, livros de magia e caldeirões pululavam desde Shmaerkhant até Khatlon a Melancólica. [Apesar de resmas de declarações da Academia Soviético-Proletária da Ásia Central afirmando que esta ausência comprovava o absurdo de supostas realidades não calcadas na experiência].

Madina Jakhongir [dizem os adeptos] resolve a questão. Era [previsivelmente] um feiticeiro, e a época em que viveu é indefinida [por razões que se verão]. Com suas poções e sua [inevitável] varinha mágica ele destronava reis, acalmava terremotos, refazia amores, jogava furacões sobre os inimigos, controlava o tempo, não só o clima, mas o tempo.

Seu excesso de poderes [paradoxalmente] garantiu a falta de menções ao seu nome [ou ao nome de qualquer feiticeiro] nos registros nacionais. Madina podia voltar atrás no tempo. Assim, após realizar algum feito fantástico [como curar todos os afetados por certa peste] podia voltar ao passado e fazer com que a peste nunca tivesse existido. Do mesmo modo podia ir ao futuro. E por alguma razão pouco explicável [que os adeptos garantem ser modéstia] ele apagou todo papel ou pedra que mencionasse seu nome. Para os adeptos, a ausência de seu nome é prova de sua existência e poder.

Desnecessário lembrar que tal versão longe está de ser unânime.

sábado, 9 de novembro de 2013

09 de Novembro

A Ponte Murada

Diz a lenda e mais quatro papiros na Universidade de Dacca que dois Xeques [antes inimigos de não ordinária ferocidade] resolveram fazer uma ponte entre seus domínios para selar uma aceitação mútua. [Desafortunadamente, dos quatro dois se revelaram falsos, um teve sua tradução contestada e outro sofreu roubo em circunstâncias reputadas como misteriosas. Assim só restou a lenda].

[Ao contrário do que dizem os livros de história] nem os Reis, Imperadores, Subgerentes e Xeques são por completo livres, assim os comandantes de lanças [diríamos hoje, os chefes de Estado-Maior] de cada lado encheram os ouvidos de seu Xeque com perigos sobre se o outro atacasse primeiro [histórias de saques e esquartejamentos (inclusive do próprio Xeque) encheram o ouvido-do-mesmo].

Soluções como guardas armados e cães ferozes e armadilhas para ursos foram propostas, tentadas e refutadas, cada qual com sua desvantagem.

Golpes de Estado quase simultâneos nos dois países mantiveram os Xeques mas colocaram no poder um grupo de pedreiros e especialistas em carpintaria [diríamos hoje, empreiteiros].

Isso explica [dizem os cínicos] a solução de se colocar um muro sobre a ponte [além de sua constante necessidade de dispendiosas ampliações e reparos]. Para amenizar a separação, batizaram o conjunto de Ponte de Fraternidade entre os Povos [lamentavelmente destruída por bomba em 31 de outubro de 1941, segundo dizem].

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

08 de Novembro

Os lourões do Norte

Uma brincadeira [que apareceu em poucos segundos no final do Filme A História do Mundo segundo Mel Brooks¸de 1981] marcou a presença dos Vikings em Amhitar. Não de todo improvável: os guerreiros que já inspiraram 3.666.666 milhões de histórias em quadrinhos, bandes dessinées e Zines em todo o mundo não navegaram longe, com vetustos historiadores asseverando que os lourões musculosos costumavam assaltar e comerciar [sem fazer muita diferença] nos rios em busca dos mares Negro e Cáspio.

Em Amhitar [se lá estiveram] não deixaram muito, exceto uma alegada comunidade de gente de cabelo de cor razoavelmente claro habitando o 22º Hexágono do Norte [embora uma versão desmancha-prazeres atribua isso a um grupo de engenheiros ingleses de ferrovia que lá viveu por volta de 1890, todos casados e conscientes do cavalheirismo de um gentleman]. As anedotas no entanto [materializadas desde vetustos incunábulos do século XV até grafittis nos prédios da capital] materializam a crença de que um dia homens com chapéus de chifre chegaram ao pais. E todos pensaram que assim fosse até que os viram tirar os chapéus e os chifres não estavam neles, mas na testa. [A simbologia de chifres masculinos sendo lamentavelmente universal, as gargalhadas até hoje se mantêm].

Canibalizada esta história pelo diretor estadunidense Mel Brooks, no seu filme os tais louros tiram os chapéus e revelam seu segredo durante um enterro. O que não deixa de ter alguma credibilidade.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

07 de Novembro

MargaRita em Amhitar

Miss Margarita Carmen Cansino [a testa larga, os olhos de furação e as pernas de sonho] nunca teve grande interesse na nobre terra de Amhitar [e assim nenhum dos 77 espectadores de seu mais obscuro (e dizem que melhor filme)]. A Sétima Filha do Xeque estreou [e encerrou sua carreira] hoje em 1947 em uma exibição de teste [para plateia fechada]. Encerrou sua carreira – um incêndio naquela madrugada no depósito nos fundos do Chinese Theater em Hollywood destruiu todo o celuloide [com exceção de um minuto e sete segundos – e a recorrência de números sete não deixou de dar material para os buscadores de mistério].

Um comentário [não isento de malícia] afirmou que n´A Sétima Filha... sobrava tudo, menos roupa. Não isento de malícia: a sétima garota [raptada por um belo e jovem Xeque rival da cidade amhitariana de Rangoon, o qual acabaria (previsivelmente) por se apaixonar por ela] nas suas danças de odalisca mais sugeria do que despia [suas mãos deslizando ágeis sobre as sedas].

Desnecessário dizer que a Amhitar do filme ganhava prêmios de falsidade – as palmeiras de estúdio e os camelos pareciam ter o dom da onipresença, sem contar que Rangoon jamais foi cidade amhitariana.

Dizem [com sobeja maldade] que tudo se deveu ao maridão Orson Welles, o qual, louco de ciúmes de Margarita, aliás Rita, aliás Rita Hayworth, queimou os originais e ainda deu sumiço na pequena parte sobrante. Embora não de todo inverossímil, desta versão não restam provas.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

06 de Novembro

Nem queijos e nem vermes

O Dragão Lonnröt combate cinco monstros na trajetória para os seus Novecentos e Noventa e Nove Paraísos. A Saga Ghazim-il-Ranidhan conta sua história, e tal emocionante narrativa seria o grande mito fundador do país se o seu título não significasse tolamente Da Arte de fazer Queijos.

Lonnröt [uma metáfora para o pacato agricultor, preocupado com sua família e região] se decepciona com a pobreza do interior e resolve desenvolvê-lo usando as [não poucas] cabras e vacas locais para fabricar queijos. Para tanto deve vencer os terríveis Nueg [Preguiça], Xhimraz [Desculpas esfarrapadas], Garigh [Esperar tudo dos outros], Zuled [Mau cheiro] e Dhakir [Podridão antecipada] – os tais cinco monstros.

[Ao contrário dos heróis de mitos normais] ele pretende múltiplos paraísos – a mensagem sendo que [para desenvolver um local] é necessária a diversidade [o objetivo sendo criar 999 paraísos – ou queijos]. Os monstros [não surpreendentemente] tentam desanimá-lo a golpes de mau cheiro, leite azedo e inhaca de cabra que se estende por léguas. O Herói ao final triunfa.

Consta que esta Saga não é lenda de um povo, mas a criação de um [mais pacato ainda] funcionário do Ministério do Desenvolvimento, que abismado com a pobreza [e a ociosidade] do povo do interior escreveu este memorando em forma de lenda em 1962, o qual mofou [como os queijos que não se fizeram] em algum escaninho, e só a desfaçatez explica como veio parar nestas Efemérides.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

05 de Novembro

O ecologista

Pralinen Farhod pronunciou hoje em 1918 no Teatro Viva o Futuro! [antigo Teatro Catarina a Grande] aquela que [pensava ele] seria sua maior conferência, que lhe abriria as portas da imortalidade. Seis dias depois soldados chutaram o primeiro estudioso ecológico de Amhitar pela fronteira do Turcomenistão e lavaram as mãos depois.

Como não poucos cientistas [e esmerando-se na falta de tato] Pralinen intitulou seu estudo Amhitar: Sociedade fracassada. Pensando tratar-se de comédia, magotes de partidários de tendências de esquerda e de direita entupiram o teatro apenas para resultar que o pobre estudioso ao final teria todos contra ele.

O estudo [que teria breve fama posterior ao ser incluído na bibliografia do livro Colapso, do ecólogo Jared Diamond, edição espanhola, edición Debolsilo, 2006] argumentava que algumas sociedades eram bem-sucedidas e outras não, e que Amhitar se colocava decididamente entre as últimas.

A plateia se agitava na medida em que surgiam estatísticas de desflorestamento, deterioração da capa do solo, falta de materiais essenciais, desperdício com bens de luxo, falta de previsão. Afirmou que não via nenhum futuro para o país a não ser uma sonolenta subordinação e [aparentemente preocupado com os primeiros assobios] quis suavizar dizendo que em compensação, enquanto o País existir, podemos dizer que as moças amhitarianas são as mais belas! A este consolo [não isento de certa estupidez] se atribui o seu exílio.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

04 de Novembro

As Torres dos Construtores

Os Zigurates [diz o orgulho nacional] não nasceram na Suméria, a Torre de Babel não era um deles, a arte da linguística nada tem a ver com eles e nenhum aspirava a chegar até o Céu mas a muito além. Os prédios de lama de Amhitar [ao contrário dos da Bíblia] só são conhecidos no país e [para decepção dos patriotas] o que restou deles é bem baixinho [embora as fundações de dezenove deles sejam amplas o suficiente para conjecturar que tinham pretensões literalmente mais altas (embora chegar além dos Céus não deixe de configurar ambição excessiva)].

De fato dizem que a mais baixa [de novo sem duplos sentidos] e corrupta das dinastias dos paxás da Amhitar seria a responsável por tais incensadas ruínas. Primeiro, são bem mais novas do que a tal Torre de Babel [a mais recente delas tendo sido abandonada hoje em 1869, um par de meses antes da invasão russa]. Segundo, seu objetivo não era Céu. Pareciam [na verdade] não ter objetivo nenhum. Eram começadas [sempre com entusiasmo] e não levadas adiante.

Um bisonho artigo [sem autor creditado] na não menos bisonha Revista Amhitariana de Auditoria [edição de 1971] esclareceu que, mais que o resultado, importavam as obras – empreiteiros amigos do SemiSultão começavam os trabalhos, que custavam quatro ou cinco vezes o que deveriam, e achavam mais lucrativo abandoná-los e pressionar por outros].

Por sua monótona semelhança com o mundo de sempre, tal versão goza de pequena popularidade.

domingo, 3 de novembro de 2013

03 de Novembro

O Rei simétrico

Dos vinte e dois Reis Medievos de Amhitar [segundo alguns, uma mera lenda] a História lembra [com detalhes minimamente apreciáveis] apenas o vigésimo-segundo [sendo o caráter imaginário de tal Dinastia e de tal Rei reforçado pela discordância em torno de seu nascimento, que se deu nos anos 333, 1111 ou 066 do calendário dos hereges, de acordo com a fonte].

Essas próprias datas acentuam o principal [e na verdade único] traço que determinou a imortalidade de tal Rei, o seu amor à simetria. Tal característica [por um lado] fazia o Rei oferecer prêmios para as mais belas moças e rapazes sem nenhum interesse sensual, apenas por ele considerar que De um lado um harmonioso olho azul, do outro um olho igual, de um lado uma delicada orelha, e do outro outra lhe faz espelhoisso faz da espécie humana mais bela que as montanhas, pois estas não se dividem em partes iguais. Por outro lado esse furor simétrico fazia o Rei massacrar com seus soldados a todo aquele que não se encaixasse na simétrica beleza, fosse homem ou animal.

A história [nesse ponto absolutamente lendária] conta que tal Rei mandou cortar em pedaços a si mesmo, pois um triste acidente de parto o fizera com um braço mais curto e a Natureza o dotara de um nariz torto e um olho maior. Uma versão mais light diz apenas que mandou apagar todos os registros de seu nome, pois este não podia ser dividido em partes iguais. O desconhecimento atual de seu nome favorece a esta última.

sábado, 2 de novembro de 2013

02 de Novembro

O único padre de Amhitar

A primeira [e na verdade única] edição da The Catholic Encyclopaedia [Robert Appleton Company, New York, 1907-1917] registra um buraco em seu mapa dos cardinalatos, arquidioceses, dioceses, eparquias e abadias de todo o mundo. O Planeta [em tal mapa] semelha ser todo coberto pelo Poder da Romana Igreja.

Exceto por Amhitar.

Uma só paróquia cobria o território amhitariano [fazendo com que o vazio católico não fosse total]. Naquela época [ou na verdade em 1913, ano em que foi feito o inventário] Amhitar possuía uma paróquia católica, e um padre.

Que foi escolhido para esta ousada missão [como geralmente acontece com as missões ousadas] por sua inadaptação a ela. Jean-Paul Aristide não devia ter saído de alguma tola aldeia francesa produtora de queijo malcheiroso. Assistira no entanto a muitos filmes de padre [já existiam na época] e, pensando em santidade e disputas com Satanás, desembarcou na Ásia Central.

E não encontrou nem belas jovens pensando em suicídio nem teimosos potentados aos que afinal converteria. Não que sua missão fosse um fracasso. Converteu uns poucos, mas ficou por ali. As profundas conversas sobre o sentido da vida não passaram dos dedos da mão.

Restou a roupa a lavar, o cotidiano café, a conta não paga a destruir amizades. E assim foi por rápidos [passaram rápido] 41 anos. Ao voltar, o padre disse que Deus mora na Banalidade. E talvez para mostrar que até isso era banal, acrescentou: ou o Diabo, sei lá!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

01 de Novembro

O primeiro Bogart

Quanto à versão hard de que Humphrey DeForest Bogart havia nascido em Amhitar, os desmancha-prazeres de sempre trataram de desmanchá-la em pouco. [Tal história aparecera a primeiro de novembro de 1957 em cinco colunas da Gazeta de Amhitar]. Restou a versão light, de que o tipo durão tirara seu aspecto de outro, este um amhitariano que vivera [se é que trabalhar numa delegacia amhitariana dos anos 1920 é viver] na capital Shmaerkhaant.

Não que o país carecesse de detetives [os nomes de Sioran Munisa, Munisa Gulshoda, Shohista Sardor e Sorakh Jalol constam até nessas Efemérides]. O que diferencia a Lamka Stephen [o homem que presumivelmente inspirou Bogart], além de seu sobrenome surpreendentemente ocidentalizado, é o casaco, o pito na boca e nem tanto a capacidade de se meter com cafetões, louras com calibres 22 na bolsa e contrabandistas de tabaco, mas de se meter com eles e sair vivo [além, é claro, das estadias de praxe no hospital].

Outra diferença é que, ao contrário de seus antecessores amhitarianos [e também da quase totalidade dos personagens do seu discípulo Bogart] Lamka é um home da máquina – pertence ao Corpo Policial e passa metade do seu tempo sofrendo a incompetência do mesmo [além das traições costumeiras das tais louras].

Puxando uma baforada, mais para o final de O Falcão Maltês, Bogart teria dito se eu não fosse eu, seria Lamka Stephen. A cena foi retirada por pura birra contra o país, dizem os patriotas.