terça-feira, 31 de dezembro de 2013

31 de Dezembro

O Quarto dos delírios de Amhitar

Iroshka Maruf [O Amor e os Sonhos são Terríveis] deixou sua casa em uma noite de Tempestade no dia anterior àquele em que completaria quinze anos [um Tempo que meu passado já não recorda] em busca de uma sombra.

A poetisa voltou à primeira luz do dia, com um lenço de lã [o qual não levara ao partir] e um escaravelho semelhante a ouro [cujo aspecto antigo e vestígios de areia inevitavelmente geraram especulações de que seria relíquia de um reino de eras esquecidas]. Pediu um beijo da avó, [um caldo de aveia da avó], e um maço de papéis finos. O Poema para Aqueles que Não Esperam revelou ser o mais misterioso [e o mais lúgubre, segundo alguns] dos trabalhos da escritora.

Não se trata de amor – o Poema se refere a um Reino que [mais do que banalmente ter existido, ou não existir nunca] acontece de maneira fictícia, abrangendo inclusive as pessoas que nele [pensam que] vivem. Sua quinta [e principal] parte afirma como um rapaz [vestido de branco com botões dourados mas que, aparte disso, ela não descreve com detalhes] deu a ela as duas pequenas lembranças e colocou seu dilema: revelar a todos a inexistência [inclusive a da própria poetisa] e arriscar perder a tudo e a si, ou continuar a ficção [ou farsa, segundo intérpretes mais pesados]. [Estes dizem (não sem certo masoquismo) que tal Reino inexistente seria o próprio Amhitar].

Perguntavam-lhe. A poetisa sorria e olhava o escaravelho [que a essa altura causava arrepios].

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

30 de Dezembro

O Terceiro dos delírios de Amhitar

Serguei Mikhailovitch Kovinev aos quarenta e sete dias de idade decidiu que Deus não existia [tal data (compreensivelmente sujeita a contestação) se baseia apenas em seu próprio testemunho]. E com quarenta e sete anos e a mesma quantidade de horas [sem que essa recorrência numérica deixe de causar fundamentadas suspeitas] ao abrir [talvez pela bilionésima-segunda vez] o terceiro tomo dos Princípios de Estética de Hegel [em um dia neblinento em torno da Biblioteca do Guia Genial dos Povos o Grande I. V. Stalin] pensou que Deus [com certeza] era um delírio – mas que os delírios podem às vezes ser reais.

De fato o sábio [em palestra dias depois na Academia Soviético-Proletária] revelou o seu pensamento. Mas não foi tanto a existência divina que o preocupava mas aquela dos delírios. Kovinev [revelam os apontamentos do aluno dedo-duro que o entregou] disse que era possível que aquela caneta [portava uma caneta] e aquela lousa [apontava uma lousa] fossem sonhos; não só elas, mas o solo no qual se apoiavam; não só o solo mas o país. Amhitar inteira poderia ser uma invenção, uma meia-maluquice [ou completa]. E por fazerem parte dela, todos seriam delírios, a começar de quem lê um relato sobre tal país inexistente. Tais declarações se tornaram ainda mais bombásticas ditas por um geógrafo – um profissional do que é sólido.

Por tal subversão foi chamado se explicar perante a subseção de pureza ideológica do Comitê Central.

domingo, 29 de dezembro de 2013

29 de Dezembro

O Segundo dos delírios de Amhitar

Houssnida Abdumalik caminhava da cidade de Shmarkhaant para outra cidade ou lugar qualquer. [Inevitavelmente Houssnida Abdumalik o fazia porque estava farto da hipocrisia da sociedade humana e buscava a paz e a tranquilidade da Natureza]. Um homem [vindo das brumas ou de qualquer outra fonte] veio a caminhar com ele. [Não era simpático nem antipático].

Disse que contaria a história da sua vida [Houssnida não lhe pediu nada]. Informou que seu nome também possuía duas letras esse. [O estranho sotaque suíço do homem (e Houssnida nunca fora à Suíça) causou espécie ao amhitariano]. O homem [que inicialmente parecia ter quarenta anos, e que agora semelhava seus sessenta (ou vinte e cinco)] afirmou que contaria tudo – e não omitiria vícios ou podridões.

Ao ouvir a história [que efetivamente continha um bocado de mel e veneno] Houssnida teve a sensação de estar muito distante dali [talvez entre Annecy e Lyon, lugares cuja existência sempre desconheceria]. Não se despediram na porta da primeira estalagem – o homem apenas partiu para uma laranjeira carregada e um roseiral [previsivelmente o estranho também amava a natureza].

Na estalagem o sábio de Amhitar descreveu o encontro – de como o homem falou que Amhitar não existia – era um delírio de sua cabeça farta de hipocrisias francesas. E muito depois uma hipótese afirmaria que aquele homem era na verdade o filósofo Jean-Jacques Rousseau. [O que ainda hoje é objeto de renhidos debates].

sábado, 28 de dezembro de 2013

28 de Dezembro

O Primeiro dos delírios de Amhitar

Utkirbek Lennon mordiscou um cogumelo no quadragésimo-nono deserto do Platô de Qyzylorda em alguma noite de 1973 e seu espírito se destacou de seu corpo [ou se juntaram, pois no caso do mago da contracultura amhitariana essas metades costumavam se separar – geralmente depois de cheirado, fumado ou injetado – às vezes os três].

Na sua alucinação [ou realidade finistélica – como ele mesmo dizia e ninguém entendia nada] viu um país de ponta-cabeça. Não literalmente [embora por alguns segundos aquela terra magicruélica realmente tenha invertido as leis da gravidade] mas porque nela o verdadeiro existia, porém apenas como pedaços para nele se construir uma mentira nova – nova, pois a mentira já existia [ela é o que se chama de realidade].

Naquele país de delírio [que um visor semelhante a neon lhe revelou ter o nome piscante (e sem sentido) de Amhitar] ele mesmo [como um Descartes que não sabia de onde vinha] possuía uma existência – ele era um hippie meio fora de época e lugar [afinal os sessenta já tinham passado, e ele não era californiano]. Isso lhe bateu como um martelo, pois ele [apesar de todas as substâncias estranhas que já empurrara para dentro] sempre soubera se chamar Utkirbek Lennon e pertencer a um país chamado Amhitar – e agora um pedacinho de cogumelo lhe informava que Amhitar era um delírio, e que ele Utkirbek, era parte daquilo. E então, quem era ele?

Mordiscou outro pedaço para ter a resposta.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

27 de Dezembro

As palavras in-existentes

Um [pouco justificável] orgulho nacional afirma que o sétimo subdialeto Khazyr seria a língua mais rica do mundo, por ter um [não isento de exotismo] alfabeto de 999 letras [o número repetido não sendo ocasional, mas uma demanda cabalística obedecida pelos falantes e pela gramática]. Outro orgulho [não mais passível de sustentação razoável que o primeiro] argumenta que a superioridade linguística nacional não se deve a uma overdose de fonemas mas ao contrário por uma ausência, aliás duas: no mais destacado dialeto nacional não existiria nenhum equivalente das palavras infinito e labirinto.

Os pessimistas de profissão [praga em todo o mundo e em Amhitar] explicam-no pela falta de imaginação: considerando-se que estas palavras se espalham como erva daninha em textos de literatura pós-moderna, explica-se a pequena [ou nula] importância do país na cultura de hoje. A mente amhitariana [continuam em sua diatribe antipatriótica] seria muito pequena para entender tais abstratos conceitos.

Os outros [que formam a grande maioria] se orgulham de que tais palavras têm origem na balbúrdia: o sem fim pode até atiçar a imaginação mas é humana e tecnicamente inviável, senão impossível. E todo problema [até beber um copo d´água] é labirinto, até ser solucionado.

Reconhecem [no entanto] os patriotas que essas palavras fornecem um bocado de assunto para os escritores sem assunto, e assim a literatura amhitariana se empobrece um tanto com sua falta.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

26 de Dezembro

Anjos sem asa

Os Anjos de Amhitar são Terríveis e essa frase [por tempos atribuída a um imitador de Abdul Al-Wazahari e que depois se descobriu ser dele mesmo] só demole sua sesquipedal banalidade pelo seu meio de Amhitar. Tal pequeno adjunto adnominal vale por um tratado teológico de não pouca originalidade – as concepções angélicas variam titanicamente mas em algo todas concordam – os anjos são iguais em todo o mundo e em todo o universo [sendo tal pretensão universalista (dizem os eternos críticos não sem certa dose de agnosticismo) decorrente do absolutismo eu-sou-certo-e-tu-és-errado que se esconde em cada religião].

De fato [continuam as únicas nove linhas sobreviventes do macerado pergaminho de Al-Wazahari] os anjos amhitarianos nada têm em comum com os bichinhos de olhos azuis e pele de bebê que se veem em gravuras e filmes de Hollywood: para começar eles não têm olhos – pelo menos alguns deles. Outros [o que os torna ainda mais monstruosos] têm 399 deles [não se dando o sábio ao trabalho de revelar quem fez tão rigorosa contagem]. [Previsivelmente] também não possuem asas.

O pior dos anjos amhitarianos [no entanto] é sua atitude; não são mensageiros de nada – não consolam, não frustram. Apenas observam – como os peixes em volta do Titanic devem ter observado. Por tais características, os anjos de Al-Wazahari nunca gozaram de popularidade e só Deus [ou os anjos mesmo, quem sabe] explicam sua permanência nestas Efemérides.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

25 de Dezembro

A Tragédia única

A peça Os Sete Contra Bukhara estreou hoje em 1897 no Teatro Nicolau II diante do Governador Militar Russo [os longos bigodes e a cara de mau de todo governador militar russo]. A presença dele [e de um pelotão de cossacos de espadas afiadas como navalhas na esquina] nada tinha de amor à arte teatral e sim de temor de perder o cargo: o sucessor de Konstantin Petrovich von Kaufmann temia perder o que aquele lendário [e com fama de cruel] general ganhara para o Czar: havia rumores de que os Sete Contra Bukhara continha perigosas mensagens subliminares de incitamento a uma revolta, degola de todos os russos invasores, profanação de templos ortodoxos, etc. - o de sempre.

De fato a tragédia narrava a história [mais que maluca, segundo alguns mais céticos] de uma garota que se importava mais que o irmão que com o noivo, e que depois da morte do primeiro [já que com o segundo ela não se importava] inventou todas as formas possíveis de irritar o governante da cidade de Bukhara – e liderou sete guerreiros tontos na tomada da cidade.

Considerada [pelos poucos que entendiam] uma imitação da Antígona de Sófocles escrita por um bêbado, a expectativa de subversão acabou se autocumprindo e multidões viam nas frases sem sentido um protesto contra a opressão estrangeira. O tal General também nada viu demais – e foi chamado a São Petersburgo a dar penosas explicações – por ter deixado passar uma peça de ódio a nosso amado Czar.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

24 de Dezembro

O Dia do Aborrecimento

E o Khagihraz-el-Gunmibohl invadiu o mundo! O maior dos sucessos nacionais se espalhou por todo o planeta em data [esperavelmente] imemorial, fazendo de todos os países [sem o saberem] simples servos do Reino de Amhitar neste 24 de dezembro dos hereges [ou dia 20 do mês Safar da Hégira, ou 199 do mês Zyhrrak do ilógico calendário Khazyr].

Uma tradução antiga [não incontestada] verte Khagihraz-el-Gunmibohl como O Dia do Aborrecimento e tal característica apenas acende o patriotismo dos radicais. Segundo eles, todos os países reúnem a alegria em poucas datas (carnavais, religiosas e outras) deixando o resto do ano presa fácil para a tristeza e o desentendimento.

Amhitar [ao contrário] em vez de datas alegres criou um dia oficial para a tristeza, e não só ela: hoje [dizem velhíssimos pergaminhos] todos eram obrigados a discutir por mínimas coisas [até por um palito de fósforo ou atraso de meio minuto era permitido]; ressentimentos deveriam ser trazidos à tona; para facilitar as rusgas, as pessoas deveriam ficar juntas e beber um pouco demais. A tristeza se concentrando em um só dia, o resto do ano ficava livre para a positividade.

Mercadores estrangeiros copiaram a festa e a espalharam pelo mundo, mas distorcida: no resto do mundo, a data é [teoricamente] de alegria – e esse sentimento forçado faz com que o dia seja na verdade de brigas, melancolia e choro, como o era em Amhitar – e para os patriotas, isso consagra o pioneirismo nacional.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

23 de Dezembro

O Mapa

Segrob o Contador de Infinitos [sendo talvez o único amhitariano a utilizar a palavra que indica o incontável] narrou [com não pequeno sucesso] a história dos mapas de Amhitar em ensaio publicado hoje em 1941 em Shmaerkhaent. Como reconhecimento de tal feito, o Partido não demorou muito para decretar hoje o Dia da Cartografia da Pátria.

Para decepção de seus múltiplos fãs [e para (talvez) diversão própria, pois Segrob era um grande gozador] a ausência de mínimos vestígios arqueológicos forçou os especialistas a reconhecerem que a principal história que Segrob contava [e depois todas as demais] não passava de ficção [sendo incrível como uma narrativa tão inverossímil foi por décadas comemorada com paradas escolares – alguns dizem que porque era tão inverossímil a história foi tomada como verdade].

A tese de Segrob [e que endossava (obviamente) o discurso da grandeza inata de Amhitar] era que o primeiro mapa do país [desenhado a mando de certo SemiSultão do qual espertamente se recusava a declinar o nome] era o melhor de todo o mundo, pela sua riqueza de detalhes. O soberano não admitia que nenhuma planta maior que um arbusto, que nenhuma pedra maior que um palmo não estivesse presente. Desnecessário dizer: o mapa tinha o tamanho do país.

Tal história [apesar de ter sua beleza] não resistiu às escavações que não encontraram nenhum vestígio dessa monstruosidade. Quanto a Segrob, místicos já disseram que o viram nas cartografias do céu, rindo. De nós.

domingo, 22 de dezembro de 2013

22 de Dezembro

A Porta

A Gigantesca Porta Sagrada de Karabagh nada tem [na verdade] de sagrada, sendo pouco menos que misteriosos os motivos que a fizeram alçar às alturas do Insondável [tão misteriosos (talvez) quanto a sua presença nestas Efemérides no dia de hoje]. Os [não muitos] especialistas que se debruçaram sobre o assunto se recolheram com uma repugnância não de todo alheia ao preconceito, pois descobriram que tal porta não guardava

alguma seita nebulosa concorrente dos templários;

o segredo do da juventude elixir;

o túmulo de Maria Madalena.

porém os [esmagadoramente, humanamente prosaicos] esgotos da cidade.

A constituição física da porta [de bronze dourado, com quatro figuras aladas nos cantos que desfraldam uma faixa (já comida pelo tempo) na qual alguns querem ler Aqui Se Esconde O Elemento Essencial Do Universo] colaborou em não pouca monta para o rio de tinta [e mais recentemente de bits de computador] que jorrou em torno dela.

O povo da cidade [e as agências de turismo receptivo] não foram lentos em promover excursões nas galerias escuras [ajudados por suspiros que lá se ouvem e que são frequentemente denunciados como fake]. As agências anunciam ser as excursões desaconselhadas para idosos, menores e sensíveis, o que os atrai aos montões.

Ninguém viu nenhum dos três segredos acima [na verdade só se vê canalização velha e latrinas quebradas] mas isso não desanima os exploradores e turistas, pois [segundo os guias] os segredos bem guardados são os melhores.

sábado, 21 de dezembro de 2013

21 de Dezembro

O Demônio de Amhitar

O Djeligh-il-Khael [que em uma tradução (não isenta de críticas) tem sido popularizado como O Demônio de Shamaarkhant] percorre as noites das ruas da capital de Amhitar.

Em contraste com os congêneres que assombram as esquinas e matas do mundo o produto amhitariano não tem chifres [na verdade nem é vermelho]; não leva um saco para raptar crianças; não podia lembrar menos um esqueleto [já que é um tanto gordito]; e as poucas testemunhas que afirmaram ter sentido cheiro de enxofre se revelaram falsas.

No começo [dizem] era temido: mães arrastavam crianças e homens tomavam posição de defesa perto do velho pouco barbado que passava por eles. A multiplicação de não acontecimentos [porque o velho nada fazia a ninguém] fez os transeuntes relaxarem seu medo.

O Djeligh pratica a democracia: olha a todos [esculturais e horríveis, bebês e decrépitos] com o mesmo desejo de nada [parece ligeiramente incomodado com a presença deles, mas só].

Com o tempo [ninguém sabe quanto] popularizou-se o novo terror do Djeligh: [ao contrário dos outros demônios] ele não quer mal a ninguém [muito menos o faz]. O Diabo amhitariano é indiferente [uma indiferença gélida, brutal].

 Isso o faz diverso de todos os seus concorrentes no mundo, e esta [tola] singularidade ocasiona que alguns tenham orgulho dele, e o celebrem [sem razão aparente] hoje nestas Efemérides.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

20 de Dezembro

A última versão

Das 1.007 [segundo outros apenas 999] versões da vida de Donyhor al-Temurbek, em 1.006 [ou 998] delas o herói nacional aparece trágico; ou espirituoso; às vezes quase espiritual; ou discursador como um filósofo. A [pós-moderna] Academia do Passado Inexistente [então em fase underground] em gravação VHS de hoje em 1984 recuperou a única versão que retrata o Grande quase irresponsável.

Pouco antes do levante contra os dominadores Turkhmans Termurbek [segundo esta versão] combatia os derrotistas [traidores] que tentavam postergar a revolta. Esta passagem [na verdade] já constava em muitas das outras versões da vida do grande amhitariano – e em todas [a golpes de retórica máscula] ele arrebatava com os argumentos de que é possível vencer, e a revolução acontecia.

Na versão VHS [no entanto] após ouvir os derrotistas Temurbek ergueu-se

Essa revolta é estúpida.

O silêncio engoliu a todos. Continuou

Por muito tempo fizemos o que era sábio. É hora de sermos estúpidos.

O levante aconteceu e [como previu o herói] foi estúpido – os Turkhmans fartaram-se de empilhar cabeças. A libertação teve de esperar mais alguns anos [variáveis de acordo com a versão].

Quanto a Temurbek, esta é única de suas 1.007 [ou 999] histórias na qual desaparece. [Não morre em glória, não ascende aos céus]. Alguns pretendem ver nisso uma significação de que às vezes é preciso seguir caminhos não trilhados, mas fora dos livros de auto-ajuda poucos creem nela.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

19 de Dezembro

A má moça

As evidências de uma possível presença de Cleópatra em Amhitar [supreendentemente] falham em convencer a muitos. São elas:

a) quatro moedas desenterradas na grande seca do Lago Sarygamysh em 1971, nas quais por muito tempo uma silhueta feminina com longos cabelos foi confundida com a Imperatriz Teodora de Bizâncio, porém novas datações indicam ser bem mais antiga;

b) uma passagem mais do que dúbia nas Vidas dos Nobres Gregos e Romanos de Plutarco [incluída na página 761 da edição da Great Books of the Western World] na qual o biógrafo se refere a uma visita da Irradiante Beleza Feminina à Terra do Sol Irradiante;

c) a permanente popularidade do cabelo liso cortado rente no pescoço entre as moças do país [esta evidência não surpreendentemente desprezada pelos intelectuais].

Amhitar [como todas as terras do mundo] se orgulha de passagens [por mínimas que sejam] que liguem o país aos grandes personagens. Rumores [às vezes pouco menos que ridículos] sobre Napoleão ou Cristo no país possuem defensores em fera.

O mesmo não ocorre com a Imperatriz Egípcia e a explicação [dizem os anti-patriotas] pouco tem de lisonjeira: o moralismo amhitariano se recusa a crer que uma jovem que foi amante de um homem casado [Júlio César]; que depois foi amante do filho adotivo dele [Marco Antônio]; e depois colecionou mais 199 [dizem com um exagero quase certo] seja um dos orgulhos do país, o que explicaria a batalha [quase inglória] para homenagear a Má Moça no dia de hoje. 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

18 de Dezembro

O bandoleiro

A ascensão de Piotr Ilich Kamenev ficou marcada hoje em 1873 nos anais de Korovulbazar quando [abrigado na única hospedaria] visitou as três únicas famílias que valiam a pena e [armado com sorriso, fraque escocês e maneiras de gentil-homem] conquistou a simpatia das filhas [e herdeiras] de cada uma. A decadência de Piotr Ilich Kamenev veio onze dias depois, quando se descobriu que ele na verdade era o bandoleiro Haafulin Akmal.

A história de Haafulin [espalhada pelos rapazes da aldeia, que a essa altura odiavam Piotr] começara na guerra. Perdera uma perna. Fora para São Petersburgo, implorar uma pensão ao Ministro da Guerra. Disse-lhe que aguardasse. Como a pensão tardasse, procurava todos os dias o ministro. Este o olhava com cara de gastrite e dizia que se acalmasse, ele não era o único.

Haafulin com pouco dinheiro [o ministro continuava a pedir (ou ordenar) paciência]. O ministro prometeu para o dia seguinte. Haafulin o aguardou na porta. O ministro irritou-se com essa descompostura. Disse que não tivera tempo, que não haveria pensão, que fosse para o diabo. Haafulin rachou a cabeça do ministro com uma bordoada. Fugiu e [com outras vítimas da injustiça] atormentava os grão-senhores no campo.

Essa história fez sucesso até que alguém lembrou seu começo: Haafulin não tinha uma perna, e Kamenev as tinha. Isso não impediu de Kamenev de perder um possível bom casamento e bem poucos sabem explicar por que tal história veio parar nestas Efemérides.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

17 de Dezembro

Farsante

Já tinham esvaziado o segundo [ou o décimo-nono] barril de vodca na birosca ao lado da estação de trem de Kyrzylkum hoje em 1904 [beirada do deserto do Balkash] quando alguém [também com uísque de cevada na cabeça] berrou que vinha ali um gaiato sósia do Czar. Um segundo depois o gajo apareceu e uma gargalhada inundou o lugar: nunca se vira alguém mais diverso do Imperador. Baixinho, mais exatamente mirrado, de olhar incerto e fala mais ainda, o farsante pediu uma dose.

Ninguém lhe perguntou, mas [com o ar de um homem para quem a vida perdeu o valor] disse que decidira viajar incógnito para ver por si mesmo a situação na guerra russo-japonesa. O trem desarranjou e continuou a viagem só com uma locomotiva e um vagão. O vagão descarrilhara a poucos quilômetros e todos os braços eram necessários para o reparo. Viu uma luz ao longe e decidiu pedir algo quente. Recusou os puxa-sacos que o acompanhavam desde que nascera. A luz era aquela espelunca. Disseram-lhe

Mentira! Perdendo uma guerra e sem nem um trem que preste – nosso Czar não é tão incompetente assim!

Tomou o último gole: Tem razão – o nosso Czar não deveria ser tão incompetente assim

e derrubou uns rublos e saiu. Riram de novo do gaiato. Que não riu de nada.

A fofoca veio aos pedaços: souberam de uma missão secreta para ver a guerra, depois que o próprio ministro da guerra estava nela, depois o próprio imperador. Não acreditaram. Mas pelo sim pelo não a birosca nunca mais foi vista.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

16 de Dezembro

O Profeta

Jesus Cristo [segundo um relato não isento de controvérsia] viajou para o Oriente. Outra narração [ainda mais distante da unanimidade] afirma que o profeta hebreu passou por Amhitar.

A primeira história descreve jornadas de aprendizagem iniciática [condizentes com um filho de Deus] em Benares e outras províncias indianas. A segunda [compreensivelmente popular no país amhitariano] afirma que ele bebeu sua sabedoria [antes de uma pouco relevante temporada no Ganges] pelas margens do lago Sarygamysh, sob as muralhas de Shamaakhaent e nas areias dos 99 desertos do platô de Qyzylorda – locais típicos de Amhitar.

As histórias do povo [elas inevitavelmente existem] se dividem em dois grupos. As primeiras falam de um louro de olhos azuis de cabelo longo, falando com voz empostada de histórias de carneiros e sementes de plantas de meio-deserto.

As segundas [muito menores em número] dizem que o que ficou na memória dos amhitarianos da época foi um adolescente [chato como todo adolescente] perguntão e que gostava de derrubar os chapéus das pessoas. E que [também como adolescente] fechava-se em copas e de seu murmurar de vez em quando saía a palavra Pai.

O 37º Boletim da Academia Soviético-Proletária dedicou duas páginas a tal controvérsia hoje em 1941. Afirmou que a segunda versão era indubitavelmente mais simpática, por menos convencional. Apesar disso, ambas são possivelmente falsas [e o possivelmente foi grande afirmação, em se tratando de uma Academia ateia].

domingo, 15 de dezembro de 2013

15 de Dezembro

Os lagos existentes talvez

Escavações [contestadas pelo geógrafo soviético Serguei Mikhailovitch Kovinev] concluíram que os 200 lagos de Amhitar secaram. Tal achado [não isento de melancolia] constou da terceira parte da Introdução do Segundo Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [publicado (com supreendentemente pouca fanfarra) em 1996] como exemplo de o que aguardaria a Humanidade, caso continuassem as temidas concentrações de carbono na atmosfera.

Mãos anônimas [dizem não sem certa dramaticidade em Amhitar] retiraram o trecho referente às lagoas do país e tal fato [atribuído alternadamente aos ciúmes dos vizinhos Kazaks e às tramoias das empresas petrolíferas] encontra explicação [talvez] na própria história dos corpos d´água. A existência de bolsões de lama sob o platô desértico de Qyzylorda aponta [é claro] para sua existência. As narrativas do suposto desastre [no entanto] [datadas entre os séculos XIII a XV dos hereges] afirmam que tais lagos [ou parte deles] eram compostos de ambrosia vertida para deleite dos deuses [uma história suspeita devido às suas óbvias semelhanças gregas] e de leite dos seios de uma belíssima princesa, como presente de amor a um bravo guerreiro do Céu.

Tais poemas [obviamente] lançaram suspeitas ao prático pesquisador materialista e à vetusta comissão de climatologistas em Genebra, o que justifica [não para os mais patriotas] a retirada do suspeitado acontecimento de tal relatório.

sábado, 14 de dezembro de 2013

14 de Dezembro

O falso-vero

No dia 21 de agosto de 1920 Leon Davidovich Trotsky declarou encerrada a etapa feudal e começada a Primavera Socialista em Amhitar. [Tal fato (não sem contestação de muitos) se celebra nestas Efemérides, na data]. No dia seguinte, o cabelo desalinhado, a barbicha e o Pince-nez invadiram em moda as cabeças um terço dos jovens do país. [O Povo (não sem maldade) os chamava de Trostsquinhos]. No outro dia os trostsquinhos começaram a perseguição aos nobres; a quem pensavam que era nobre; a quem algum dia desejara ser nobre; e a quem pensara que algum talvez algum dia tivesse a veleidade do desejo de o ser].

Nesse contexto [não isento de medo] um homem começou a circular pelas ruas. Vestido de fraque [um pouco puído, vá] e uma cartola de segunda mão o Conde Von Bismarck de Chateaubriand e Vicenza [era assim que ordenava que o chamassem] sentava-se à mesa com os temidos militantes, exigia charutos e vinho e previsivelmente se dizia herdeiro da nobreza de três países. Os rapazes [não sem gargalhadas] lhe davam tudo. Sua ordem de fuzilamento [dizem] foi rasgada pelo próprio Trotsky, que teria dito que A Revolução não executa doidinhos.

Só depois de seguro no seu falecimento [hoje em 1962] se soube que o Conde era conde mesmo [não com tantos sobrenomes reluzentes, mas conde]. E adotou a estratégia de assumir uma verdade inverossímil, tanto que os outros a consideraram mentira. Só então se entendeu o que dizia [entre os militantes] que A mentira tem o seu apelo.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

13 de Dezembro

Totais Lembranças

Baxrom Ogiloy partiu hoje em 1859 para Deus-Pai, Alá ou Zighukrax, a 888ª divindade do panteão Khazyr. O tio materno de Sunef, O Olvidador [celebrado nestas Efemérides a 13 de novembro] deve sua importância [tal como o sobrinho] à memória.

Baxrom Ogiloy se lembrava. Todos os dias no fim de tarde se sentava em frente à sua casa e contava do passado. O ponto inicial deste era a luz [que alguém conseguiu interpretar: Baxrom lembrava o próprio nascimento]. Lembrava a primeira rosa e todos os exercícios de aritmética do terceiro ano. Muitas vezes [porém] esquecia o próprio nome. Tinha de ser guiado, pois esquecia o próprio endereço. Esses lapsos [não infrequentes] decepcionavam os estudiosos de Shamarkhaant e Dacca que vinham à procura de um homem com memória absoluta.

Um desses estudiosos [não sem sagacidade] bradou: Baxrom não era uma farsa – ele efetivamente tinha a memória total [anseio de todos os homens]. Essa memória [no entanto] não o permitia hierarquizar suas lembranças. Assim, as chaves da casa estavam no mesmo nível das conjugações do grego vistas havia meio século. O nome da filha competia com o ronronar de um gatinho que acariciara quando bebê. Ao tentar se lembrar, Baxrom puxava uma nebulosa de informações tanto impressionantes [para curiosos] como inúteis [para ele].

Por isso até hoje em Amhitar existe o ditado Que Deus te faça lembrar de tudo! Isso é uma praga – para espanto dos estrangeiros.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

12 de Dezembro

A [i]lógica do Tempo

Zitora Zarfar conquistou a imortalidade [e também certa (talvez injusta) fama de imbecil] ao colocar hoje em 1677 dos hereges [93 do mês Morhaxxor do ano 22 do calendário Khazyr] o primeiro relógio capaz de contar a passagem do tempo de acordo com tal seita amhitariana. Não muito original – não era a primeira vez que alguém tentava um mecanismo baseado na força do vento. [Vizinhos riam de sua forma meio abutre meio urso de metal].

A lógica [ou melhor, a falta dela] diferenciava a engenhoca de Zitora – pois os seus concorrentes [movidos por uma (talvez compreensível) nostalgia do sentido] montavam seus relógios baseados em polias, alavancas e pesos que, bem azeitados, davam regularidade ao movimento e [consequentemente] ao tempo.

Os Khazyr [no entanto] abominavam a lógica [que eles (dizem) denominavam Mahgrik-ul-Ghaazudh, a Cobra Negra]. Seu calendário [e suas horas] variavam de acordo com uma tabela cujo único sentido [concluíram não poucos] era falta de um. Uma hora Khazyr podia durar de três a 339 minutos da hora cristã, sem que essa recorrência de números três implicasse qualquer regularidade. Zitora reproduziu essa lógica-sem-lógica ao colocar o vento como propulsor e regulador - nos furacões o tempo era mais rápido. Nas calmarias, não passava.

Zitora Zarfar morreu com 107 anos, onze meses e nove dias [mas como tal contagem se deu no calendário da seita, ninguém sabe com exatidão o que significa].

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

11 de Dezembro

Ecolo-dia de Amhitar

“Quando Dasha Ulugbek iniciou sua caminhada pelo Deserto de Qyzylorda não havia Deserto de Qyzylorda, mas uma Floresta de árvores de 90 metros com esse nome”.

A repressão ao primeiro estudo ecologista de Amhitar faz com que hoje seja considerado o Dia da Natureza no País. De fato tal obra [de autoria coletiva e todos os autores com nomes apropriados como Camelo, Elefante e Cobra] não se pauta pelo rigor metodológico. O amor pela natureza muitas vezes eclipsa as estatísticas e a permeia uma [talvez imprudente] confiança em testemunhos de velhos viajantes, como o do andarilho Dasha Ulugbek [celebrado nestas Efemérides a 23 de janeiro e reputado por ter (dizem) dado a volta ao mundo a pé por três vezes].

A censura [no entanto] veio da denúncia de que Amhitar nem sempre foi deserto [já tendo sido jardim ou selva] em uma época em que o Partido sugava a última gota dos rios e o último grão de solo limoso para transformá-la em algodoal.

Um motivo mais nebuloso [e talvez por isso mais forte] veio da descrição de que o mundo da natureza era belo [com seus lagos verdosos e nuvens de pólen e bambus a se dobrar sobre riachos] enquanto o mundo dos homens soprava fumaça e graxa e ferro fundido. O Subcomitê de Propaganda de Agitação do Partido considerou a obra exemplo de nostalgia burguesa – e [inadvertidamente] condenou as palavras acima à imortalidade, ao proibir [hoje em 1946] o opúsculo no qual elas constavam na primeira página.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

10 de Dezembro

Não existe esse País

O Atlas das Sociedades Inexistentes [publicado em Shmarkant hoje em 1911] posiciona [de maneira menos que explicável] a própria Amhitar como Não-Real. [Tal fato (compreensivelmente) arrancou represálias de índole nacionalista, desde um corte de cabelos forçado de um dos subeditores da obra (o qual teve de fugir para a Terra dos Kazaks) até duas sóbrias moções de repúdio, uma no mesmo ano, da (já decadente) Academia de Ciências de Amhitar e outra (três décadas mais tarde) da Academia Soviético-Proletária da Ásia Central].

E de fato [dizem] não era para tanto. A inofensiva obra sem crédito de autor [embora o adjetivo longe esteja de ser unânime] listava a terra amhitariana como uma das civilizações efetivamente existentes, mas apenas na cabeça de seus criadores, ou de um único criador [ou ocioso sem ter o que fazer – a redundância se encontra na página CXCLX do livro]. Embora isso em princípio dê razão aos patriotas [de que o tal Atlas acusa o país de não existir] , mitiga-se ao se ler que seu conceito é bem mais amplo: os Estados Unidos [a Terra da Liberdade] também constam como país que só existiu na imaginação de Jefferson e Washington e mais meia dúzia, já que naquele país [afirmam os anônimos autores não sem certo progressismo] nunca existiu real liberdade.

A dubiedade do Atlas garante sua permanência nas datas da pátria – e também debates [que enchem os jornais sempre que as notícias rareiam] sobre a efetiva existência nacional.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

09 de Dezembro

O Super-herói

A Revista underground Zhalib-al-Bashimoy [geralmente traduzida como O invencível Homem Estrela] lançou-se hoje em 1947 na Livraria Heróis do Proletariado no centro de Shamaekheent. Seus desenhistas [um grupo de rapazes que hoje ganhariam o título de nerds] prudentemente não veio ao lançamento. [Sua atitude se revelou acertada quando o Partido proibiu a revista depois do terceiro número e mandou recolher os exemplares no mercado [transformando a revista hoje em cult e catapultando seu preço].

Bashimoy [o tal Homem-Estrela] ostenta o [um tanto tolo] galardão de ser uma das poucas criações amhitarianas que não clama por pioneirismo mundial – ao contrário, assume-se claramente inspirado por um tal que veio de certo Planeta Krypton e vive disfarçado de repórter foca de jornal bobo.

O primeiro herói em quadrinhos de Amhitar tem [não sem obviedade] a luz como sua grande arma: sempre que os contrabandistas, ladrões de joias ou mesmo paqueradores da sua sempre eterna quase-namoradinha Kyndal Yuna passam dos limites, ele pode emitir clarões que cegam e prendem [e que de vez em quando falham (como qualquer lâmpada queimada) para desespero dos fãs que torcem por ele].

Dizem que Stalin riu das histórias da sua distante província – tanto que ordenou que o herói tivesse bigodes, para ficar mais parecido com o Líder. Como os desenhistas se recusaram, a revista foi proibida. Essa versão [a muitos] parece demasiado parecida com histórias em quadrinhos para ser real.

domingo, 8 de dezembro de 2013

08 de Dezembro

Nasci há muitos anos

Por 49 anos vivi na cidade de Ônix – e com esta frase Shahlo Maqsud [barba, três mil rugas e um olhar que denunciava catarata] começou seu relato hoje em 1879 na estação de Zarafshan a um magote de oficiais peterburgueses que o olhavam com um misto de curiosidade para com o estrangeiro [como todo czarista] e desprezo pelo mesmo [como todo czarista].

Sua narrativa em nada diferia das dos malucos que sempre emergiam nas estações ferroviárias fronteiriças ao platô desértico de Qyzylorda, se, primeiro, uma cidade chamada Ônix existisse [e nada havia de semelhante em toda a Ásia Central] e se Shahlo Maqsud não tivesse [a se levar a sério suas narrativas] dez mil anos de idade [onze mil, setecentos e sessenta e três, segundo uma paciente contagem].

O General Konstantin Petrovich von Kaufmann o ouviu e a coincidência de que lá se encontrasse o Comandante russo tem sido interpretada [não por poucos] como uma prova de que Shahlo falava a verdade. Vieram as inevitáveis perguntas sobre Cleópatra e Napoleão e a estas Shahlo respondia [com certa banalidade] que não conhecera essas pessoas.

O fato de não ter presenciado nem a descoberta da América nem a Queda de Roma, tendo apenas vivido em vilas abandonadas que ninguém conhecia minguou o interesse sobre ele. Terminou seus dias contando histórias a troco de moedas nos arredores de Shamearkhaant – a maioria delas inventadas, sobre Napoleão ou Cleópatra, ou sobre como presenciou a Descoberta da América.

sábado, 7 de dezembro de 2013

07 de Dezembro

O nosso Gandhi

O Gandhi de Amhitar não tem [obviamente] a mesma fama do original. [Aliás para os nacionalistas Jumanova Bekzod é que é o verdadeiro, sendo o outro o Jumanova da Índia. A cronologia não deixa de lhes dar razão, pois a cópia nasceu em 1869, quando o original amhitariano já contava vinte e sete anos de vida].

Sua carência de filmes biográficos de Hollywood não se deve a uma suposta falta de mérito. Jumanova tornou-se falado por convencer o governo de ocupação russo a deixar de amassar os camponeses do país como se fossem minhocas fossem e a conceder o Estatuto de Autonomia do Território de Amhitar, assinado com os dentes rilhando [dizem] pelo Czar Nicolau II hoje em 1897, e que outorgou certo autogoverno ao país. Os métodos para tal vitória foram os mesmos de todo combatente não-violento: meditação, concentração e capacidade de levar cacetadas sem se engolfar pelo ódio que vem junto com elas.

A grande diferença do célebre Jumanova para uns certos Gandhi e Martin Luther King é que, enquanto estes senhores nos deixaram palavras de sobriedade, o lutador amhitariano legou aos pósteros apenas a frase Kalibash-al-Junihkol, pronunciada quando lhe perguntaram por que era tão corajoso e lutava tanto pela paz.  Tal frase [vertida em certo subdialeto Khazyr] foi traduzida
Todos os homens têm sua maneira particular de ser estúpidos; esta é a minha.

Por ver com tanta facécia a sua nobre missão, Jumanova é menos lembrado do que merecia.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

06 de Dezembro

O Dia do Nada

O Marhabogh-ol-Khemizoor [que do sétimo dialeto Bakhmar é tradicionalmente entendido como Dia Universal do Nada] causou a maior discussão da Academia Soviético-Proletária da Ásia Central hoje em 1942. De resto sem grandes motivos. Os sétimos sectários Bakhmar [cuja existência também é longe de ser aceita com unanimidade] adoravam muitos deuses [ou nenhum, discutem eternamente as academias]. Em verdadeiro pesadelo para os arqueólogos, as suas dezessete cidades em volta do lago Sarygamysh às vezes [por camadas e camadas de argila datada por carbono 14] ostentam tantos deuses que parece que nem os Museus de Shmarkaant, Dacca e Moscou juntos não poderiam conter os pedaços de estatuetas. Tal período é seguido por outro em que se diria que o povo se converteu subitamente ao ateísmo – até uma nova fase de intensa produção sobrenatural.

No congresso da Academia hipóteses se empilharam, a maior parte [compreensivelmente] de corte marxista-leninista. A briga começou quando um grupo avançou que o Dia do Nada não era a jornada depressiva que todos pensavam. Essa data [a maior do calendário Bakhmar] lembrava ao povo que não acreditar em Nada ou em Tudo não faz diferença, o importante era viver – e era um dia em que pululavam danças e piadas além de alguma shiibatz [a cerveja marrom amhitariana].

A imagem de um povo folgazão celebrando ao mesmo tempo a validade e a não validade da crença não é popular em nenhum dos lados, e poucos são os que lembram a data.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

05 de Dezembro

Tentações

A Zoda Shuhrat  tem-se atribuído [não sem flamante injustiça] a frase

Isso é uma tentação – e eu vou cair nela

constante em dois pedaços de pergaminho [um deles rasgado em quase metade] conservados no departamento de manuscritos raros da Universidade de Dacca. Na verdade [dizem] o tímido linguista [o único capaz de escrever um texto coerente utilizando palavras de 49 línguas e dialetos, segundo seus não poucos discípulos] não foi responsável por tal frase. Zoda apenas a traduziu. O verdadeiro autor seria [não surpreendentemente] o Monge Gelasiminius. Um prelado é [por razões óbvias] o alvo preferencial para uma fofoca do gênero – a imagem de um homem velho se entregando ao festim com jovens desnudas sendo praticamente um arquétipo no inconsciente coletivo.

Um artigo publicado hoje em 1992 no Boletim da Academia do Passado Inexistente [embora não impassível de contestação] eliminou muito do charme da história: Abdulaeva Behruz [o mestre de Zoda e de outro grande glotologista, o folgazão Gulhayo Mansur] teria escrito tal frase [e dado aos pergaminhos propositalmente um tom antiquado]. A tentação  que se referia [no entanto] era a de saber todas as línguas do mundo, coisa que [quase] conseguiu – chegando a 999. Embora seja uma tentação [e quase demoníaca, pois saber as línguas é controlar os homens, desde a Torre de Babel] por alguma razão ela tem sido considerada monótona, e desde então esta data, embora constante nessas Efemérides, tem sido pouco lembrada.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

04 de Dezembro

O salvador normal

Husan Mariya salvou a cidade de Karakalpakstan das mãos dos selvagens. [Husan Mariya, lugar-tenente ou, segundo outros mais radicais, um avatar do ubíquo Donyhor al-Temurbek]. Tal prodígio de coragem é objeto de debates não isentos de amargura [os tradicionalistas afirmam que aconteceu em 26 de março de 887 (no calendário herético) e versões mais modernas o empurram para o dia 89 do mês Kheomirxx do ano 003 do calendário Khazyr; uma opinião moderada o estabeleceu na data de hoje em 1251 ou 1252, aproximadamente a mediana entre as duas primeiras].

A natureza precisa de seu feito também causou [não poucas] rixas de família [dizem]. A ideia de que teria degolado 77 inimigos [Turkmans ou Kazaks, as sub-histórias variam] tem sido abandonada [para escândalo dos conservadores] em favor de versões light, de que matou [e à de espada] apenas três, com uma subcorrente afirmando que só deu ordens, sem ter ele mesmo enviado ninguém para o outro Mundo.

Nada disso [no entanto] é mais contestado que as histórias pós a grande batalha. Husan [dizem os poucos testemunhos da época] arrotava e dormia de tarde e olhava para saias de garotas [e às vezes tinha timidez de fazer-lhes propostas] e gostava banhos de rio. Pessoas o visitavam em busca de palavras heroicas e ele lhes dava bocejos e pão e queijo [não melhores nem piores que os de todos] e falava sobre o tempo. A escandalosa normalidade do herói o fez menos louvado [talvez] do que deveria.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

03 de Dezembro

O anti-anti-herói

O maior dos heróis byronianos de Amhitar, [curiosamente] não o construiu o maior dos escritores byronianos de Amhitar, o [não surpreendentemente] chamado poeta Byron Jasur. De fato ninguém o fez. Não consta autor na coletânea cujo banal título A Vitória de um Patriota [publicado em imprensa clandestina driblando a censura czarista hoje em 1882] é menos interessante que o [muitas vezes omitido] subtítulo Ou: os meus problemas com o mundo, um mundo que na verdade nunca me interessou muito.

Likarek Sunnat protagoniza tal epopeia [o que para alguns a torna suspeita, pois Likarek é nome estranhíssimo para um amhitariano, para um russo, ou para qualquer pessoa]. O herói [título duvidoso] dos mil e dezessete versos desperta pouca empatia: mal-humorado, não muito bonito [com uma cicatriz na face esquerda não contribuindo em nada para sua aparência], Likarek combate os inimigos do país não porque creia na bondade do país e na maldade dos estrangeiros mas porque sente que,  mais que a coisa certa, lutar pela liberdade é a coisa menos errada a fazer, ou talvez a única.

Muita tinta [e bits de computador] se gastaram na busca de quem seria Likarek. Tentativas de que Ele somos todos afundaram no seu excesso de romantismo. Uma corrente [não isenta de iconoclastia] clamou que esse semideus sem charme seria Donyhor al-Temurbek, o herói da pátria. E o combate a tal versão é um dos poucos assuntos no qual o governo e a guerrilha da oposição se põem de pleno acordo.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

02 de Dezembro

A lei do Amor

- Vivemos no mundo. [Todos calaram o bate-boca]. E o mundo não é puro.

[Barba de quem não vê lâmina há três anos, cara gretada de sol do deserto]. Continuou:

- E Deus, bem, talvez não exista. E se existir, pior ainda: não se importa.

O Czar tinha uma [não surpreendente] alergia por eleições. As primeiras de Amhitar ocorreram com o enfraquecimento do regime estrangulado por guerra e revolução. A Primavera das Flores de Barro açambarcou o poder no país.

O nascente governo amhitariano queria: indústrias; tecnologia; fios de telégrafo em todos os quilômetros quadrados do território; alta produtividade agrícola; e também [diziam os eternos opositores]: vida eterna; paz eterna; felicidade; amor e maçãs em calda para todos – e para o próximo ano, de preferência para a próxima semana.

Inevitavelmente surgiu a ideia de proibir a intimidade sem respaldo em amor verdadeiro. [O projeto de lei respectivo (dizem) recebeu forte apoio das floriculturas e lojas de chocolates]. Levantou-se então Nasiba Dalton, cuja idade [já próxima (fofocavam) dos cem] o respaldava teoricamente pouco para uma matéria afeita a fogosos jovens. E disse o que pensava do mundo.

Calaram-se todos. O que não impediu o avanço do projeto. Resolveu-se tudo de maneira amhitariana [a meio-termo]: tornou-se lei o amor [espiritual e puro] obrigatório. Porém não foi seguida na prática e um golpe de Estado logo derrubou o regime. Por causa ou não da lei – é questão aberta.

domingo, 1 de dezembro de 2013

01 de Dezembro

Quase Mil e Uma Amhitares

As Noites de Amhitar não eram Mil [estimativas não inteiramente livres de pessimismo afirmam não passar de cinquenta]. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: a coletânea de histórias fantásticas de Amhitar [que permaneceu sem nome até sua tradução para o Bengali moderno e sua publicação hoje em 1827] no início numera os episódios. Depois a ordem se dissolve mas semiólogos [não sem paciência] chegaram à quantidade [ainda significativa] de 333. A necessidade de um título vendável levou o editor a rotular o volume de Os Dias Fantásticos de Amhitar.

Não os 333 Dias Fantásticos – ao orgulho [para não dizer ao machismo] amhitariano repugna qualquer comparação com uma tal de Mil e Uma Noites de uma tal Arábia [é assim que nos bares de Shmaerkaant se referem a tal obra, entre dentes]. A razão [dizem] é que sem infidelidade não existiria Sultão, nem Sherazade, nem metade [em uma estimativa tímida] das histórias que ganharam o mundo.

Evitando as anedotas de mulheres de gênios, mulheres de sultões, mulheres de vizires e até mulheres de peixeiros todas diuturnamente empenhadas na nobre arte da chifrança do marido [e que enchem a boca de Sherazade e os ouvidos do Sultão] a coletânea amhitariana sofre do terrível mal da monotonia, o que, se a torna desconhecida internacionalmente, coloca-a mais autenticamente como nacional, por ser Amhitar a grande pátria do ramerrão diário. [Evidentemente são os eternos críticos que o dizem].