quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

01 de Janeiro

Amhitar diz Adeus

Esta é a última postagem deste blogue. Por 365 dias os heróis de nosso povo [o guerreiro Donyhor al-Temurbek, o cronista Abdul al-Wazahari, o tio deste, Nilufar, a feminista Breanna Oygul, o enigmático Houssnida Abdumalik, o Monge Gelasiminius (o único não nascido na pátria), os românticos historiadores Dilafruz Michelet e Java Kharlilah, a belíssima Juju Shilmora, o andarilho Dasha Ulugbek, o mal humorado Iusya Marzhaffar, o General Iqbol Chavkat, a doce poetisa Iroshka Maruf, o marxista geógrafo Serguei Kovinev e dezenas de outros (assim como estrangeiros que passaram por nossa terra, de Elizabeth Taylor a Trotski)] desfilaram suas proezas e baixezas nesta página de bits.

O Povo do Reino de Amhitar agradece a você que leu este testemunho nosso – de beleza, loucura e [acima de tudo] de sonho [assim como manda seu carinho aos voluntários brasileiros que traduziram estas páginas subversivas (escritas no quinto subdialeto Bakhmar) para a língua portuguesa].

Dizem os opositores [eles sempre existem] que Amhitar é delírio. Estão errados [embora não muito]. Nosso país [e seus desertos e suas muralhas e suas montanhas que furam as nuvens] efetivamente se constitui em desafio para a banal [e aparente] realidade das pedras, engarrafamentos e telefones. O mesmo [no entanto] pode ser dito de [quase] qualquer país.

Todos eles agradecem e marcam novo encontro [não em um mundo que há de vir] mas noutro [de delírios] que já está.

Amhitar diz Adeus.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

31 de Dezembro

O Quarto dos delírios de Amhitar

Iroshka Maruf [O Amor e os Sonhos são Terríveis] deixou sua casa em uma noite de Tempestade no dia anterior àquele em que completaria quinze anos [um Tempo que meu passado já não recorda] em busca de uma sombra.

A poetisa voltou à primeira luz do dia, com um lenço de lã [o qual não levara ao partir] e um escaravelho semelhante a ouro [cujo aspecto antigo e vestígios de areia inevitavelmente geraram especulações de que seria relíquia de um reino de eras esquecidas]. Pediu um beijo da avó, [um caldo de aveia da avó], e um maço de papéis finos. O Poema para Aqueles que Não Esperam revelou ser o mais misterioso [e o mais lúgubre, segundo alguns] dos trabalhos da escritora.

Não se trata de amor – o Poema se refere a um Reino que [mais do que banalmente ter existido, ou não existir nunca] acontece de maneira fictícia, abrangendo inclusive as pessoas que nele [pensam que] vivem. Sua quinta [e principal] parte afirma como um rapaz [vestido de branco com botões dourados mas que, aparte disso, ela não descreve com detalhes] deu a ela as duas pequenas lembranças e colocou seu dilema: revelar a todos a inexistência [inclusive a da própria poetisa] e arriscar perder a tudo e a si, ou continuar a ficção [ou farsa, segundo intérpretes mais pesados]. [Estes dizem (não sem certo masoquismo) que tal Reino inexistente seria o próprio Amhitar].

Perguntavam-lhe. A poetisa sorria e olhava o escaravelho [que a essa altura causava arrepios].

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

30 de Dezembro

O Terceiro dos delírios de Amhitar

Serguei Mikhailovitch Kovinev aos quarenta e sete dias de idade decidiu que Deus não existia [tal data (compreensivelmente sujeita a contestação) se baseia apenas em seu próprio testemunho]. E com quarenta e sete anos e a mesma quantidade de horas [sem que essa recorrência numérica deixe de causar fundamentadas suspeitas] ao abrir [talvez pela bilionésima-segunda vez] o terceiro tomo dos Princípios de Estética de Hegel [em um dia neblinento em torno da Biblioteca do Guia Genial dos Povos o Grande I. V. Stalin] pensou que Deus [com certeza] era um delírio – mas que os delírios podem às vezes ser reais.

De fato o sábio [em palestra dias depois na Academia Soviético-Proletária] revelou o seu pensamento. Mas não foi tanto a existência divina que o preocupava mas aquela dos delírios. Kovinev [revelam os apontamentos do aluno dedo-duro que o entregou] disse que era possível que aquela caneta [portava uma caneta] e aquela lousa [apontava uma lousa] fossem sonhos; não só elas, mas o solo no qual se apoiavam; não só o solo mas o país. Amhitar inteira poderia ser uma invenção, uma meia-maluquice [ou completa]. E por fazerem parte dela, todos seriam delírios, a começar de quem lê um relato sobre tal país inexistente. Tais declarações se tornaram ainda mais bombásticas ditas por um geógrafo – um profissional do que é sólido.

Por tal subversão foi chamado se explicar perante a subseção de pureza ideológica do Comitê Central.

domingo, 29 de dezembro de 2013

29 de Dezembro

O Segundo dos delírios de Amhitar

Houssnida Abdumalik caminhava da cidade de Shmarkhaant para outra cidade ou lugar qualquer. [Inevitavelmente Houssnida Abdumalik o fazia porque estava farto da hipocrisia da sociedade humana e buscava a paz e a tranquilidade da Natureza]. Um homem [vindo das brumas ou de qualquer outra fonte] veio a caminhar com ele. [Não era simpático nem antipático].

Disse que contaria a história da sua vida [Houssnida não lhe pediu nada]. Informou que seu nome também possuía duas letras esse. [O estranho sotaque suíço do homem (e Houssnida nunca fora à Suíça) causou espécie ao amhitariano]. O homem [que inicialmente parecia ter quarenta anos, e que agora semelhava seus sessenta (ou vinte e cinco)] afirmou que contaria tudo – e não omitiria vícios ou podridões.

Ao ouvir a história [que efetivamente continha um bocado de mel e veneno] Houssnida teve a sensação de estar muito distante dali [talvez entre Annecy e Lyon, lugares cuja existência sempre desconheceria]. Não se despediram na porta da primeira estalagem – o homem apenas partiu para uma laranjeira carregada e um roseiral [previsivelmente o estranho também amava a natureza].

Na estalagem o sábio de Amhitar descreveu o encontro – de como o homem falou que Amhitar não existia – era um delírio de sua cabeça farta de hipocrisias francesas. E muito depois uma hipótese afirmaria que aquele homem era na verdade o filósofo Jean-Jacques Rousseau. [O que ainda hoje é objeto de renhidos debates].

sábado, 28 de dezembro de 2013

28 de Dezembro

O Primeiro dos delírios de Amhitar

Utkirbek Lennon mordiscou um cogumelo no quadragésimo-nono deserto do Platô de Qyzylorda em alguma noite de 1973 e seu espírito se destacou de seu corpo [ou se juntaram, pois no caso do mago da contracultura amhitariana essas metades costumavam se separar – geralmente depois de cheirado, fumado ou injetado – às vezes os três].

Na sua alucinação [ou realidade finistélica – como ele mesmo dizia e ninguém entendia nada] viu um país de ponta-cabeça. Não literalmente [embora por alguns segundos aquela terra magicruélica realmente tenha invertido as leis da gravidade] mas porque nela o verdadeiro existia, porém apenas como pedaços para nele se construir uma mentira nova – nova, pois a mentira já existia [ela é o que se chama de realidade].

Naquele país de delírio [que um visor semelhante a neon lhe revelou ter o nome piscante (e sem sentido) de Amhitar] ele mesmo [como um Descartes que não sabia de onde vinha] possuía uma existência – ele era um hippie meio fora de época e lugar [afinal os sessenta já tinham passado, e ele não era californiano]. Isso lhe bateu como um martelo, pois ele [apesar de todas as substâncias estranhas que já empurrara para dentro] sempre soubera se chamar Utkirbek Lennon e pertencer a um país chamado Amhitar – e agora um pedacinho de cogumelo lhe informava que Amhitar era um delírio, e que ele Utkirbek, era parte daquilo. E então, quem era ele?

Mordiscou outro pedaço para ter a resposta.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

27 de Dezembro

As palavras in-existentes

Um [pouco justificável] orgulho nacional afirma que o sétimo subdialeto Khazyr seria a língua mais rica do mundo, por ter um [não isento de exotismo] alfabeto de 999 letras [o número repetido não sendo ocasional, mas uma demanda cabalística obedecida pelos falantes e pela gramática]. Outro orgulho [não mais passível de sustentação razoável que o primeiro] argumenta que a superioridade linguística nacional não se deve a uma overdose de fonemas mas ao contrário por uma ausência, aliás duas: no mais destacado dialeto nacional não existiria nenhum equivalente das palavras infinito e labirinto.

Os pessimistas de profissão [praga em todo o mundo e em Amhitar] explicam-no pela falta de imaginação: considerando-se que estas palavras se espalham como erva daninha em textos de literatura pós-moderna, explica-se a pequena [ou nula] importância do país na cultura de hoje. A mente amhitariana [continuam em sua diatribe antipatriótica] seria muito pequena para entender tais abstratos conceitos.

Os outros [que formam a grande maioria] se orgulham de que tais palavras têm origem na balbúrdia: o sem fim pode até atiçar a imaginação mas é humana e tecnicamente inviável, senão impossível. E todo problema [até beber um copo d´água] é labirinto, até ser solucionado.

Reconhecem [no entanto] os patriotas que essas palavras fornecem um bocado de assunto para os escritores sem assunto, e assim a literatura amhitariana se empobrece um tanto com sua falta.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

26 de Dezembro

Anjos sem asa

Os Anjos de Amhitar são Terríveis e essa frase [por tempos atribuída a um imitador de Abdul Al-Wazahari e que depois se descobriu ser dele mesmo] só demole sua sesquipedal banalidade pelo seu meio de Amhitar. Tal pequeno adjunto adnominal vale por um tratado teológico de não pouca originalidade – as concepções angélicas variam titanicamente mas em algo todas concordam – os anjos são iguais em todo o mundo e em todo o universo [sendo tal pretensão universalista (dizem os eternos críticos não sem certa dose de agnosticismo) decorrente do absolutismo eu-sou-certo-e-tu-és-errado que se esconde em cada religião].

De fato [continuam as únicas nove linhas sobreviventes do macerado pergaminho de Al-Wazahari] os anjos amhitarianos nada têm em comum com os bichinhos de olhos azuis e pele de bebê que se veem em gravuras e filmes de Hollywood: para começar eles não têm olhos – pelo menos alguns deles. Outros [o que os torna ainda mais monstruosos] têm 399 deles [não se dando o sábio ao trabalho de revelar quem fez tão rigorosa contagem]. [Previsivelmente] também não possuem asas.

O pior dos anjos amhitarianos [no entanto] é sua atitude; não são mensageiros de nada – não consolam, não frustram. Apenas observam – como os peixes em volta do Titanic devem ter observado. Por tais características, os anjos de Al-Wazahari nunca gozaram de popularidade e só Deus [ou os anjos mesmo, quem sabe] explicam sua permanência nestas Efemérides.