quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

31 de Janeiro

O Homem que pôs o planeta mui longe


Lera Bakhram não era conhecido, nem mesmo dos astrônomos hindus da Universidade de Delhi,  até que Oleg Bakhram, o Ministro de Economia Doméstica da breve República Soviética de Amhitar o transformou em pioneiro da ciência nacional e decretou em 1924 que hoje deveria ser festejada a publicação de seu Planisfério Incompleto do Universo, uns seis séculos antes. [Não se sabe se eram parentes, embora o vaidoso Oleg assim o quisesse].

Ao contrário das outras astronomias primordiais, o sistema de Lera Bakhram colocava hereticamente o ser humano nas beiradas de um Universo, o qual, segundo o astrônomo, era o refugo de outro, que por sua vez era de outro, e assim por diante, e o número de Universos não era simbólico, tipo três, sete, noventa e nove ou infinito, mas dez, um número banal. No centro do décimo ou Universo Central, segundo Lera, não havia uma raça de demônios mas dez cabanas abandonadas de um povo tão chato que nem valia a pena conhecer. O Planisfério arriscava a teologia quando afirmava que não havia Inferno, pois o ser humano significava tão pouco que nenhum deus perderia seu tempo criando lugares para puni-lo.

Com tantos bocejos na sua concepção de mundo, natural que apenas três Planisférios tenham sobrevivido antes de 1924. Oleg fugiu com o último dos originais pelo planalto do Pamir nos expurgos de 1936, e há dez versões diferentes do que aconteceu a ele, todas banais como o sistema astronômico.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

30 de Janeiro

A Invasão dos Inimigos Primordiais


Vieram e deixaram pilhas de estupros, cadáveres e tripas e fugiram para o Norte. Ocorreu na data de hoje [27 de Rabi da Hégira, ou 9 de Kheomirxx no calendário Khazyr], há cerca de treze séculos, com uma variância de sete dias para mais ou para menos – essa é a história oficial.

A história oficiosa [talvez tão irreal quanto a primeira] narra que os inimigos [ou seus desenhos] variaram como o vento – no começo tinham três chifres [o terceiro no meio da testa nunca tendo sido satisfatoriamente explicado], depois se tornaram algo parecidos com humanos, apesar do chapéu de metal de asas pontudas de quatro braças. A história da fuga também é questionável – apesar de se dizer que nunca desapareceram, não há testemunhos minimente seguros da existência de tais inimigos nos últimos onze séculos. Quanto ao massacre, um cemitério venerado como portador dos ossos das vítimas, escavado, só produziu areia.

A invasão primordial possibilitou o gasto de muitas moedas para construir muros, fossos e torres de vigia contra esses terríveis, que sempre estavam nas montanhas que às vezes se viam, às vezes não, muito ao longe. Oficiais eram condecorados por impedir que o inimigo tivesse coragem de dar as caras e empreiteiros sempre atendidos em suas advertências de que as muralhas precisavam de reforço. Geralmente eram eles que mandavam contar dos horrores do massacre, e como era necessário manter-se vigilante para que nunca mais acontecessem.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

29 de Janeiro

O Dia Um daqueles que nada querem


A passagem das dezesseis horas e trinta e oito minutos para as dezesseis horas e trinta e nove minutos do dia de hoje marca no calendário Khazyr o equivalente à meia-noite do dia de ano novo nos demais calendários. No auge da cultura Khazyr o povo comemorava, em vez de com fogos de artifício, com bocejos e um ou outro choro lamentoso. [Na sua decadência a cultura Khazyr  foi mais alegre].

Seu calendário, usado até hoje por certas seitas como os Selvagens Alados, pode ser transliterado como Jamaakhyr-ol-Dinjaab, aproximadamente a expressão Meses ilógicos como as estrelas. Diz a versão do historiador Dilafruz Michelet [como sempre contestada como excessivamente romântica] que a data de hoje foi escolhida exatamente por ser oposta a de outros calendários. Esses geralmente se baseiam nos solstícios e equinócios e nascimento de profetas. Já o dia de hoje não significa nada, nem astronomicamente, nem na história pátria. Nele não nasceram grandes gênios nem se lamentam grandes batalhas. Essa falta de significado talvez forme a grande originalidade da cultura Khazyr, e, talvez, de toda a cultura Amhitar em relação aos demais povos do mundo – diz o entusiasmado historiador patriota.

A própria narrativa Khazyr desmente um tanto esses arroubos – segundo ela, os deuses criaram o tempo nesse dia pouco significativo porque os deuses não querem nada, e se o querem, é por puro tédio de serem deuses

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

28 de Janeiro

Descoberta dos duvidosos alces da caverna Dhazmiir


O governo do SemiSultão Dhoxrux (1849 a 1868) passou para história como o supremo da monotonia – o próprio SemiSultão retratado como um gordo comedor de manteiga de elefanta. [SemiSultão – tradução aproximada de Kahrzz-ul-Magouir – que significa algo como chefe sem ser na inteireza]. Mas isso só se refere à segunda metade do seu reino. Na primeira aconteceu a sensacional descoberta, na beirada do Mar de Aral, de uma caverna coberta de inscrições rupestres.

Akmal Sabohat, um dos primeiros habitantes de Amhitar a frequentar uma universidade [em Montpellier] a descobriu e destruiu, ao menos simbolicamente. Quando descreveu os belíssimos mamutes, cervos, peixes e alces naquele buraco em Dhazmiir, levou algum tempo para convencer a todos de seu entusiasmo. O Semi-Sultão, a princípio relutante, campeonou a ideia de O Homem Primordial era de Amhitar. Akmal panteonou-se como herói.

Não por muito. O próprio Akmal desconfiou que alguns daqueles animais eram falsos. Mais: que eram cópias não muito bem-feitas de desenhos da Revue de Deux Mondes. Passou a inimigo da pátria. O SemiSultão o baniu e Akmal para continuar com a cabeça enterrou-se como médico de uma aldeia miserável na Normandia e nunca mais quis saber de cavernas. Seus adeptos dizem que fora o próprio Dhoxrux que ordenara aquelas pinturas, como factóide para um governo que já se monotonizava. Proibida a princípio, essa versão acabou esquecida por puro tédio.

domingo, 27 de janeiro de 2013

27 de Janeiro

A Sétima Arte do Primeiro Filme


A História Oficial afirma [de maneira considerada duplamente errônea] que hoje no ano de 1919 estreou Itinerário do Mundo, o sétimo filme feito em Amhitar [tendo os seis primeiros se perdido], com cola caseira e tesoura servindo de material de edição e que apesar de tudo se revelou obra prima que inspirou a obra [genial ou supremo aborrecimento, de acordo com o crítico] O Ano Passado em Marienbad, do francês Alan Resnais. Tal versão, como tudo, recebeu seus contestadores, especialmente o crítico Jasur Iroshka, o qual, antes de seu desaparecimento, publicou o opúsculo A Odisseia dos Inexistentes, com sete peças de crítica literária, três novelas e um conto, este último de ficção científica, escrito em uma língua incompreensível na qual só se entendem duas palavras, Os Saticons.

Na segunda de suas críticas, Jasur afirma que Itinerário do Mundo não repete cenas, o que o torna muito diferente do filme do francês. Consiste na verdade em uma câmara colocada na mesma posição, a qual registra os gestos diários das pessoas de uma rua – as aparentes repetições, longe de sofisticação artística, simplesmente refletem a monotonia da vida.

Isso já seria golpe suficiente no amor próprio nacional, se o crítico ainda não acrescentasse que Amhitar possuía uma pujante indústria cinematográfica anterior – com títulos como A Bacanal de Afrodite ou O Harém Proibido do Paxá. Dizem que a isso se deve seu sumiço em uma viela em Xangai em dezembro de 1942.

sábado, 26 de janeiro de 2013

26 de Janeiro

Descoberta do mistério das frutas-de-chumbo


Os grossos [e um tanto aborrecidos] nove volumes da História Oficial do Futebol no Uzbequistão revelam uma surpreendente [e possivelmente apócrifa] história do desporto futebolístico antes mesmo da chegada dos primeiros times paquistaneses a disputarem partidas oficiais. Como toda história nacionalista e triunfalística, atribui a invenção desse esporte não aos ingleses mas ao povo de Amhitar.

De maneira bem pouco surpreendente, a história se passa em um tempo longínquo em que os homens eram homens [insinuando que os de hoje não mais o são] e um herói de nome suspeitamente russo chamado Samizdat ensinou aos guerreiros que, nos intervalos das batalhas, e para se manterem em forma na arte de chutar cabeças arrancadas dos inimigos Gotgh e Magzodhir, deveriam chutar bolas de chumbo, um chumbo vegetal arrancado de plantas que só existiram naqueles tempos heroicos, que além de tudo, ainda produzia água.

Tal história, além de conflitar com a versão igualmente nacionalista de que o garoto Khazimoor inventara quase todos os esportes, produziu um impasse botânico, dada a impossibilidade da existência de frutas com essa improvável mistura chumbo-aquática.

O mistério só se resolveu com a descoberta de três gravuras [uma delas imprestável] da Biblioteca de Alexandria: as bolas seriam na verdade cocos. O que deu origem a outra história patriótica de que o coqueiro, hoje espalhado pelo mundo, seria uma árvore de Amhitar.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

25 de Janeiro

Falso aniversário da Conquista Tártara


A versão tradicional dizia que os Tártaros conquistaram Amhitar no dia sete de julho (o mês sete), galgando sete muralhas de argila, às sete horas e sete minutos no ano 77 da Hégira, matando sete mil inimigos e empilhando as sete mil caveiras em sete colunas de fogo. O historiador romântico Dilafruz Michelet [na verdade é pseudônimo] remexendo pergaminhos mofados concluiu que essa versão é tão ridícula quanto a boba repetição do numeral sete e a mistura do calendário cristão (julho) com o muçulmano (Hégira).

O acervo do cronista Abdul Al-Wazahari [redescoberto por Dilafruz] colocou o problema de excesso de documentos: constam as versões que os Tártaros invadiram no dia dezoito de novembro, às 15 horas; que utilizaram pombos correio para se comunicar; que Átila em pessoa subira as muralhas sem usar as mãos [versão particularmente tola porque Átila não era tártaro]; sem falar das datas de três de fevereiro, quinze de agosto e catorze de novembro, todas no improvável horário da meia noite; além da inevitável versão de que Amhitar repelira seus inimigos, e de uma última de que os inimigos não se interessaram por conquistar um lugar insignificante como Amhitar, e a nunca a invasão aconteceu.

O Governador Konstantin Petrovich von Kaufmann em 1869 impôs a versão de hoje, e como os russos mandavam, essa tornou-se oficial. Dizem que era simplesmente o aniversário de sua mãe. [Da conquista russa, ao menos dessa ninguém duvidava.]

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

24 de Janeiro

A Incerta Ascensão de Feruz Karimhov


Há pouca dúvida, mesmo em uma história assolada de mitos como é a de Amhitar, que seja no dia de hoje que Feruz Karimhov sumiu do mundo dos vivos e que tal ocorreu no ano dos hereges de 1617, embora as certezas por aí parem.

Durante gloriosos sete dias [algumas versões assinalam onze] este sapateiro consertou o mundo. Parava joalheiros e comerciantes e descrevia a fome dos pobres. Quando os ricos não se comoviam Karimhov lhes afundava ao punhal nas barrigas. As moedas roubadas (ou expropriadas) eram jogadas nas casas humildes, embora alguns humildes gritassem que  Karimhov devia trazer-lhes mais dinheiro, que ele os roubava.

A diferença entre a rápida trajetória do herói de Amhitar e a longa carreira de Robin Hood reside na diferença entre um homem real e um mito. Inevitavelmente os guardas do Sultão o arrastaram para um morro e a degola. As testemunhas divergem. Para a maioria, uma adaga da altura de sete montanhas rasgou as nuvens e o herói subiu num pulo e num sorriso. Outros não concordam, mas foi a versão que prevaleceu.

Quiseram os deuses [mas os deuses não querem nada, segundo a mitologia Khazyr] que o herói Feruz Karimhov tivesse o sobrenome semelhante ao do ditador Islam Karimov. A data de hoje é a única comemorada tanto pelo governo, que a celebra enforcando quatro oposicionistas, como pela oposição, que, entrincheirada nas serras, se recusa a revelar o nome dos soldados do governo que envia para junto do herói.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

23 de Janeiro

O homem que circum-percorreu o mundo


Dasha Ulugbek [dizem] começou suas três voltas ao redor do Globo [um evidente exagero, denunciado mais tarde pelo geógrafo soviético Serguei Kovinev] no dia de hoje, no ano [calendário herético] de 1138. Dizem as seis lendas [eram mais, porém a sétima foi considerada subversiva pelo governo do General Chavkat e queimada] que o jovem [doze ou treze anos] Dasha Ulugbek deu o seu primeiro passo e topou com um velho de rugas de canyon e perguntou onde era certa aldeia [há 99 versões do seu nome, todas inconfiáveis].

A resposta Harruzsmachir-Kaj-Bakashtimoor desafiou linguistas até o século XIX. Significa:

- Você não poderá chegar lá, daqui.

Ulugbek apenas colocou o primeiro pé adiante do segundo e se deslocou. E pôs o segundo à frente do primeiro, e se deslocou mais. Concluiu que esta era a essência do caminhar: os pés um após o outro, o outro após o um. Cabeça vazia, nada além do puro ir. E descansar sob uma árvore e fugir de bois e pedir comida e levar surras e sobreviver às surras. Perguntava da aldeia. Respondiam:

- Você não poderá chegar lá, daqui.

E ele colocava o primeiro pé adiante do segundo.

Trinta ou Trezentos anos depois [as versões variam ridiculamente] um velho chegou. Disse que era Dasha Ulugbek, e que o mundo não era infinito e dera voltas a ele. Consideraram-no fantasma. Ou farsa. A Escola Soviética de Geografia, inimiga dos sobrenaturais, apoiou a segunda opinião. Nunca se soube da aldeia - não na versão oficial.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

22 de Janeiro

A batalha que não era


O quase-menino Khazimoor nos seis relatos do Livro dos Distantes nos quais é citado aparece magro como papel, sorridente até para os ratos e meio-herói. Nem sempre o foi. Os generais o declararam covarde e gastador das energias do povo com bobagens.

De acordo com o terceiro dos relatos, foi no dia 20 do segundo mês de Jumada (22 de janeiro) que ele juntou bastante resina da erva Zhimmhir e fez uma esfera. Com grande risco de surra ou vida jogou na cara do primeiro que encontrou na praça. O homem já tirava a adaga quando Khazimoor pediu a vingança, que ele jogasse de volta. E logo um grupo jogava a esfera nas caras uns dos outros, e riam. E no dia seguinte outro grupo, maior pelas dúzias. E no outro, mais ainda.

O Conselho das Armas berrou que os homens tinham de furar barrigas com espadas e não jogar bolas na cara alheia. Proibidas essas brincadeiras tolas e açoitados três ou quatro de seus praticantes, ainda assim elas continuaram. O aperfeiçoamento de substituir as boladas na cara por um aro através do qual a bola passaria e a organização dos jogadores em dois bandos cabe, no entanto, a seguidores do rapaz, que passaram a preferir essas guerras de passar bolas por aros às guerras de verdade.

No século XX a delegação da então União Soviética pretendeu que Khazimoor fosse declarado Inventor do Futebol, do Basquete e do Esporte em Geral mas a terceira assembleia geral da UNESCO, liderada pelos Estados Unidos, rejeitou a moção.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

21 de Janeiro

A Narrativa do Anticomeço


“El- Khazazharakbattar destrói o Início de Tudo” – e quem o escreveu não era gente pequena. Uma improvável tradução búlgara desta epopeia narrativa do começo do mundo caiu nas mãos de um romeno meio fascistinha chamado Mircea Eliade, que a traduziu (trabalho de má qualidade, pois tradução da tradução) e escreveu opúsculo sobre ela, o qual incluiu como apêndice da segunda edição de seu clássico O Mito do Eterno Retorno, distribuída nesta data.

No El- Khazazharakbattar (por ele traduzido como O Começo do Início dos Recomeços) o mundo começa numa ordem. Há deuses, senhores, servos e escravos, todos felizes, as montanhas em ordenado círculo e as águas sem se misturarem com os ares. Sem que a própria narrativa seja muito clara a respeito, em algum ponto os homens querem tomar terras e trigo dos outros homens, os machos batem nas fêmeas, alguns homens põem coroas na cabeça e cobram impostos, e os ares se revoltam contra as águas em furacões e as águas devolvem secas e o chão gera terremotos.

As epopeias (todas) se sucedem em irritante monotonia – em todas há uma passagem do Caos para a Ordem, feita por um Herói. A epopeia Amhitar transforma a Ordem em Caos, obra de Ninguém. Mais adequada ao amargo homem moderno, talvez, e que contrariava as próprias conclusões de Eliade, preso às epopeias tradicionais. Nenhuma honestidade é absoluta, nem mesmo a intelectual, e o sábio retirou a incômoda epopeia Amhitar das edições ulteriores de seu clássico.

domingo, 20 de janeiro de 2013

20 de Janeiro

Partida das primeiras carretas de seda


Comerciantes engordam, enriquecem, envelhecem e por isso os contadores de histórias os repelem como tema. Mas uma pesquisa dezesseis séculos depois realizada por dois técnicos da Universidade de Stanford estabeleceu a história de Eldor, o Intruso, como a segunda mais repetida no mercado de Shamarkaand. Estabeleceram de maneira mais ou menos arbitrária esta data do ano 327 [uma das poucas informações sobre Amhitar que veio de fonte externa, do monge jordaniano Gelasiminius].

Das nove versões plotadas pelos pesquisadores a que lhes pareceu mais confiável colocava Eldor como jovem gargalhante, gordote e engolidor de hectolitros de cerveja marrom [shiibatz] – as duas versões que o apresentavam como ser extraterrestre sendo desprezadas como risíveis. Eldor faminto por dinheiro e mais ainda pelas prostitutas que o dinheiro traz se meteu a romper o monopólio dos Han, encheu as carretas de seda (que Amhitar produzia mas não exportava) e se propôs a chegar a Aidorot-Niingur [Roma].

Discordam de quantos pescoços a navalha de Eldor teve de rodar para chegar a seu destino – mas sempre são muitos os Han, partas e casaques que Eldor enviou ao armazém das sombras. Esse primeiro lote, dizem as lendas, era de seda vermelha, pois o prevenido Eldor sabia que a possibilidade de respingos seria grande.

A versão de que morreu pobre e comido pelas venéreas em um beco do Trastevere considera-se muito moralista para ser real. 

sábado, 19 de janeiro de 2013

19 de Janeiro

Reviravolta no Conselho dos Amargos


Dos três legados do breve domínio da seita dos Khazyr [decifrados pelo historiador e cavaleiro Alisher Birame, discípulo de Abdul Al-Wazahari e louvado pelo Movimento Gay como o primeiro homossexual da história de Amhitar], o Conselho dos Amargos é o menos compreendido [sendo os outros o começo de uma ponte sobre o rio Jakhdur-Uidorat (literalmente, caixa ou cesto de pão) e um calendário de Meses ilógicos como as estrelas, usado até hoje].

No dia anterior à sua sentença de morte por lapidação, Alisher Birame dividiu a trajetória do Conselho em suas fases bem distintas. Criado o Conselho para exercer o Poder Supremo, ele inicialmente decidiu que a vida é uma tristeza que termina em morte. Esta fase se caracterizou por abstenção e castidade. Homens se vestiam de verde (a cor do luto) e quanto menos se divertiam mais eram prezados.

Um golpe palaciano (não sem algum sangue) no dia de hoje no ano 625 dos hereges trouxe ao Conselho outro grupo, o qual afirmou que ajuntar mais desgraça à vida não reduz suas desgraças. Os homens deviam comer, beber e copular. E o fizeram. E o Reino Khazyr (antecessor de Amhitar propriamente dito) foi por algum tempo o mais feliz da Terra Central.

Como terminou essa fase ninguém o sabe, pois quando ia escrevê-lo Alisher Birame foi chamado pelos carrascos. Outros dizem que essa segunda fase talvez seja fictícia - seria a invenção de alguém executado exatamente por sua forma de prazer.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

18 de Janeiro

Dia da Recusa à Opressão da Família Burguesa


As greves e as linhas enferrujadas do telégrafo fizeram com que a notícia da Revolução Bolchevique só chegasse a Amhitar no dia 14 do primeiro mês de 1918 (31 de dezembro dos Ortodoxos, 8 de Rabi dos Muçulmanos, 15 de Myhumirxx da Seita Khazyr). Por três dias a perplexidade (pois a distância fazia o poder do Czar parecer invencível) dominou, e depois o medo. O Palácio das Dezoito e Meia portas amanheceu abandonado pela Guarda Negra, que, segundo a piada, amarelou de medo. E o poder caiu na mão do único que restou.

Gulchik Oygul (dizem em informação apócrifa tatara-tataraneto da temida Raya Oygul) tivera um microdestaque com a publicação de três opúsculos: um livro de sonetos louvando o navegador Sayyd Umarkhan; dezenove poemas sobre as vinte e duas espécies de rosas de Amhitar (sendo três deles secretos) e um surpreendente folheto sobre a utilidade das cargas de cavalaria em combate. Baixinho e magro, quando sentou no trono abandonado declarou que sua revolução era mais profunda que a dos sovietes, e decretou que As mulheres casadas estão livres para viverem seus amores fora da opressão matrimonial, e as solteiras não devem dar nenhuma importância à pecha de não-virgens.

Deposto e exilado quarenta horas depois, o governo provisório, em um gesto conciliador, decretou a data comemorada hoje. Dizem muitos que, naquelas quarenta horas, Amhitar foi uma verdadeira Gomorra, e o dizem não sem certa inveja.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

17 de Janeiro

Publicação do primeiro romance de Amhitar


- Detesto ser quem sou.

A deprimente primeira linha (que também é o título) do romance de Jamshid Mohigul trouxe poucos leitores e crítica desfavorável em sua época, enquanto hoje, se os leitores continuam poucos, o tirano Karimov se declara seu admirador (acredita quem quer ou é forçado a).

Figura interessante a de Jamshid: os homens usavam túnica, ele cobria suas pernas com tubos de pano. O turbante era quase obrigatório, ele preferia usar panos pendentes pelo pescoço. Sempre de preto, barbicha densa, seus romances falavam de estranhas tribos, porque muito pequenas: um homem, uma mulher e poucos filhos morando em uma habitação onde se sabia exatamente onde terminava e onde começava o exterior. Às vezes tinham uma ou outra serviçal.

As tramas envolviam sempre o comércio carnal da mulher da tribo com um homem que não era membro daquela tribo, ou do homem da tribo com uma mulher que não o era, o que gerava culpas, emoção desconhecida em Amhitar fora das guerras. Em um país onde alguns homens tinham trinta concubinas oficiais esse enredo causou não risos, mas suspeitas de loucura.

Críticos europeus acusaram Jamshid de ser um imitador dos romances franceses de corno, um Flaubert misturado com Maupassant com a desvantagem de não ter olhos azuis.

Calaram-se ao fazer as contas: Jamshid publicara seu romance no ano 1355. Não poderia imitar ninguém. Então os críticos se calaram, e sem ter como desvendá-lo calam até hoje.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

16 de Janeiro


Criação do Mercado de Samarcanda

Abdulloh ainda não ganhara o apelido de o-contador-de-histórias-de-triste-fim e sua barba negra já passara de uma braça quando se meteu a contar a história do mercado onde ganhava suas moedas.

 Como sempre, três círculos de gente se reuniram à sua volta. Estabeleceu uma data, dia 20 do mês Safar (16 de janeiro) e criou um cara, a quem chamou de Temurbek, o qual, vendo que os homens se aborreciam com uma alimentação monótona, inventou uma pedra sobre a qual todos se encontrariam regularmente, e se divertiriam e poderiam trocar tâmaras por trigo, vinho por centeio.  E todos ficaram felizes e o chamaram herói.

Terminava a história de Temurbek para o seu criador. Mas não para outros. O povo a recontava e de mercador Temurbek passou a curador de leprosos, de velhote a jovem de trezentas amantes e de simples a guerreiro de lança. Não haveria problema se um par de meses antes o sobrinho do Xeque não o tivesse envenenado. Esse sobrinho (de cujo nome original apagou os registros) passou a apresentar-se como Temurbek, descendente direto do primeiro. A multidão primeiro por medo depois por costume passou a vê-lo belo e heroico e xamã.

Voltando de feiras do Golfo, Abdulloh não sem imprudência se meteu a negar que Temurbek tivesse existido. Que era uma invenção sua e as glórias lhe eram devidas.

Desapareceu a duas léguas da cidade e poucos duvidaram que os dois Temurbeks, o herói e o atual, não tivessem a ver com isso.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

15 de Janeiro


Batalha de Shurat, a de muitos resultados

Dessa batalha entre hordas de cavalaria ao lado do lago Orol Dengizi no ano 1002 (392 do profeta) sobraram:

·         5.137 homens, dos cinquenta mil que começaram a batalha;
·         29.000 braços e pernas cortados, os que não foram comidos pelos abutres;
·         8.307 cavalos ainda em razoável estado;

E três versões da luta que estabeleceu o domínio de Jamol Kardakxian por dezessete anos, nos quais estabeleceu o terror aos seus inimigos e o terror agradecido de seus aliados.

Pela primeira, Jamol Kardakxian desceu o morro à beira do lago com seus cavalos com armadura de ferro e com bravura inquebrantável cortou narizes e pescoços dos inimigos hereges armênios;

Pela segunda, Jamol nunca desceu o morro. Sua oceânica covardia o acometeu de crise trêmula durante toda a luta; abrigou-se numa cabana e só saiu para se sagrar vencedor;

Pela terceira, o miserável tratante na verdade se vendera ao inimigo (e seu sobrenome meio armênio não ajudou a diminuir essa história). Seus janízaros, furiosos, o empalaram no local e puseram um impostor em seu lugar, o qual reinou por dezessete anos.

Podia-se pensar que Jamol Kardakxian adotou a primeira e heroica historia. No entanto ele dizia que a verdadeira era a última – e dava uma de suas gargalhadas. O Tirano confessava que ele mesmo era uma farsa – e isso aumentava ainda mais o medo dos súditos – pois apesar de farsante, as espadas estavam na sua mão, e ele dividiria em dois quem dissesse que mentia.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

14 de Janeiro

Crucificação de Iaziza, o “Cristo de Amhitar”


Os missionários jesuítas que chegaram a Amhitar (em 1868 ou 1869) tentaram e não conseguiram, na conversão dos calendários, concluir que Iaziza fora morto em um dia de Páscoa, ou mesmo a 25 de dezembro. Não queriam compará-lo a Cristo, claro, mas usá-lo como um sinal de os bons são sempre sacrificados pelos pecadores.

As três gravuras que restam dele [uma delas curiosamente estampada em um selo, e outra danificada] mostram um rapaz de 16 ou 17, com cara de ladino.

Diante de seu venerável avô materno, falava: Demorará muito para morrer e eu herdar suas propriedades? Diante de um amigo, dizia: Como sua conversa é maçante! Diante da esposa de um amigo: Que mulher feia! Ao passar a filha do Sultão: Quero foder-lhe a boceta.

Sua brutal sinceridade ganhou inimigos e estes conseguiram acorrentá-lo em uma masmorra na margem do rio Asur-Daria, e a exclamação diante da princesa não melhorou o caso. Seus tormentos aos poucos lhe modificaram a fama. De desprezível passou a aborrecido, de aborrecido a tolo, de tolo a sincero, de sincero a profeta que denuncia os erros na cara dos homens, e sofre as consequências da injustiça deles.

Segundo a versão jesuíta ele foi crucificado em um alto morro com dois bandoleiros. Segundo outra história, foi liberado por dois soldados que gostaram de suas sinceridades frente a alguns oficiais do Sultão. E ele ao fugir teria sido comido por nove crocodilos, mas até isso pode ser história. 

domingo, 13 de janeiro de 2013

13 de Janeiro

O Livro dos Relatos Aracnídeos

Este dia marca o momento em que o livro assinado por Abdul Al-Wazahari chegou ao Bazar de Shmrarkhaanda, capital do Reino Dividido de Amhitar, cem anos após o falecimento de seu autor, na verdade simples coligidor de histórias anteriores .Tratava-se de 345 páginas de pergaminho em 69 exemplares que logo sumiram do mercado, este último número considerado excessivamente significativo para ser real.

Tal livro, que supostamente divulgaria costumes íntimos do Reino de Nuxhon, um reino dominado por mulheres situado depois dos Desertos, principiava com 25 insultos à raça masculina, tais como:

A Fêmea existe para a Fêmea;

O falo sempre desaba em pouco tempo;

Tentem, tolos. Não conseguirão igualar a Aranha.

E continuava com desenhos de [belíssimos, adita não sem parcialidade o editor Al-Wazahari] de jovens afastando as coxas e encontrando suas intimidades e com face de êxtase; ou de círculos de cinco, alternando moças e experientes, cada uma a trazer com sua mão os fumos do Paraíso para a outra. O fato de serem de raças diversas [há moças negras e de longo cabelo escorrido como indígenas americanas, muito antes de se saber que essas raças existiam] trouxe elogios quanto à sapiência das autoras e também acusações de fraude.

A mais consistente delas é que seu autor não era o historiador Al-Wazahari, e sim um renegado conhecido como Muxanmetdin, que vendeu milhares de cópias e comprou mulher belíssima e teve vinte e duas filhas.

sábado, 12 de janeiro de 2013

12 de Janeiro


Ascensão ao Trono de Muniza I, talvez o Único

A primeira vez que falou disse:

- Vocês não existem.

Seu sétimo discípulo lhe atribuiu o nome, do uzbeque Mhuhh-neiz-zkahi, aquele –que-não-tem-significado, embora seja difícil decifrar a ligação desse nome com um homem sem memória.

Muniza tinha menos que memória. Não veio de fronteira alguma. Suas maneiras não eram nem delicadas nem hostis, senão de indiferença.

Riram. Alguns bateram nele. Mas à força dele insistir, souberam aos poucos sua filosofia. Muniza acreditava que só ele existia. O mundo era uma ilusão criada por algum daimon para arrancar-lhe certo segredo primordial, o qual ele não poderia entregar pois nem ele sabia qual era.

Por absurda que fosse, e talvez por isso, a doutrina teve adeptos, ou não exatamente adeptos – outras pessoas que acreditaram que cada um deles era o Centro Do Universo, e nenhum dos demais existia. De sete, seus adeptos passaram a setecentos, e destes a dezessete e setecentos mil, muitos com espadas à cintura. Temeroso, o Xamã cedeu a esse exército que na verdade era de um homem só, pois todos se acreditavam o único.

Muniza governou quatro dias com bondade e três dias com maldade e na noite do oitavo dia o cavalo corcoveou e lhe partiu o pescoço quando ele cavalgava para o distrito das meretrizes. E isso também foi considerado uma ilusão por seus adeptos, que apesar de tudo deram-lhe o número póstumo de “I”, quando ele só poderia ser o Único.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

11 de Janeiro

Queima da última muda de Erva-do-paraíso

Este nome fantasioso se deveu não à planta mas a alguns seguidores dos Beatles e de Timothy Leary o guru da Contracultura do LSD, quando apareceram no Sul da Califórnia dois exemplares [com falhas de tradução] do Caderno Provisório dos sub-sacerdotes de Amhitar, sendo eles (segundo versões) mais poderosos que os sacerdotes do Rei.

Os Cadernos falavam de uma pequena árvore cujas folhas, se ingeridas, não ofereciam perigo; porém se inaladas em infusão com cal e iodo puro detonavam no homem outro estado de consciência.

O equívoco dos gurus contraculturais deriva de que a Erva-do-paraíso não produzia nenhum prazer, nem mesmo provisório. Apenas, com ela um homem podia refazer seus próprios passos. Se virou à direita, poderia pensar que virou à esquerda – e lá um bando o espreitava, e o estrangulava pelas moedas de sua bolsa; ou podia ter voltado atrás, ter se encontrado com a carruagem de um rei vizinho, e se casaria com a filha do rei.

Perdidos nas possibilidades, os viciados perdiam contato com a realidade e muitos morriam – caíam em abismos ou lagos ou eram atropelados pelos cavalos que viam mas aos quais não davam importância, sonhando sem fechar os olhos a pensar no que poderia ter sido.

O Príncipe Muniza III, penúltimo Rei do Décimo-segundo período, mandou queimar cada muda. Ele o fez espantado pelo poder maléfico da erva e (dizem) pressionado pelos sacerdotes, que temiam a ascensão de seus rivais.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

10 de Janeiro


Chegada da Doutrina dos Espíritos

Zulfikar MaKahardec (ou Makerdekk) forçou a entrada pela Fronteira Sudoeste em 1886, em uma da poucas datas precisas de Amhitar. Para um santo homem, era diferente – não trazia nenhum vestígio de aura em torno da cabeça, cuspia com frequência constrangedora e seu cabelo à escovinha lhe dava um ar banal.

Seu sucesso (com algum exagero esse substantivo lhe pode ser concedido) se deveu à sua estranha doutrina de que quem está, está, esteve e estará. Como, lhe diziam. De outras formas, ele respondia. Quem fui eu – perguntava-lhe uma adolescente – um assassino – dizia ele – que afundou facas em barrigas de três homens para lhes seviciar as filhas. E eu quem fui – perguntou um dos Sábios – uma prostituta que atendia pelo menos onze clientes por dia.

Tais repostas não lhe deixaram de trazer inimigos, que afirmaram que ele não passava de charlatão que repetia uma doutrina estrangeira. O fato de Zulfikar no dialeto do Sudoeste significar enganador, e Ma  significar só um artigo indefinido, deixava apenas o nome Kahardec, muito semelhante ao do homem distante que falava de espíritos.

Desmoralizada, a doutrina de  MaKahardec não sobreviveu ao seu fundador. Teve sucesso apenas entre alguns oficiais do exército, que raciocinaram que, já que a morte nunca era definitiva, não havia problemas em se matar alguém por motivos políticos, desde que justos. E fundaram a Mão Negra, sociedade matadora conhecida pelo apelido de Oficiais do Capuz Negro.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

09 de Janeiro


Data do Sacrifício Primordial

Da ditadura do General-de-Batalhão Iqbol Shaavkhat (ou Chavkat, como no diário oficial de seu governo de apenas dezenove dias) restou pouco, e desse pouco só três coisas são lembradas, mais como fonte de riso. O conjunto estético formado pelos seus bigodes, sua careca e seu uniforme cinza-acentuado; o Itinerário do Mundo, filme inacabado feito pela Casa Civil do governo, encontrado anos depois e que por suas constantes repetições (dizem) inspirou O Ano Passado em Marienbad; e a tentativa dar uma hierarquia a cada um dos dias do ano. O dia de hoje, dizem que por pressão dos Oficiais do Capuz Negro, a mais influente aglomeração política do breve governo, foi incluído como a sétima mais importante festividade.

Sua descrição é que antes os homens recebiam uma cuspida, devolviam uma facada. Eram roubados em dez centavos, queimavam quinze casas. Um sábio homem disse que para ter paz se devia sacrificar um membro da comunidade. Ele deveria ter todas as qualidades e nele deveria ser enterrado o ódio.

O escolhido foi ele mesmo. Seus esperneios e gritos abalaram sua fama de santidade mas não lhe salvaram a vida. Daí se criou a civilização em Amhitar.

O general pensou em um nome para esse herói primeiro, e deu-lhe o de Inabat, o sobrenome de solteira de sua mãe. Estranha homenagem pouco durável. No dia seguinte os exércitos de Lev Trotski chegaram e o general foi fuzilado como Traidor, Reacionário e Implacável inimigo das massas.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

08 de Janeiro

Chegada à Terra dos Homens Duplicados


Fahrod Feruz Shavkat escrivão na frota estabeleceu em seu [oito vezes contestado] diário de bordo com [não muito] firme mão que foi no dia 25 do segundo mês de Jumada (ou 8 de janeiro) que seu capitão Almirante Dasha Shernazar que partira há exatos setecentos e dez dias da Cidade do Golfo chegou à esta Terra sem nome. Bem a tempo: não sem dramaticidade, os marinheiros tinham lhe dado apenas quatrocentos minutos e meio [a razão de tal precisão nunca tendo sido bem explicada] antes de chegarem a qualquer lugar onde se saciassem de água, comida e mulher.

Aproximavam-se dos homens daquele lugar – eles se aproximavam também. Temerosos, os marinheiros se afastavam, os nativos (barbados e sujos ) o faziam também. Enfraquecidos pelo tempo e pela vontade de continuar vivos, os marinheiros se contentaram com uma pilha de provisões ali perto – e a carregaram sem pudor por seu roubo, enquanto os nativos à distância também trabalhavam em suas coisas, parecendo não se importar exceto por outra ou uma olhada temerosa.

À sua volta pulularam as explicações. Aqueles homens seriam Demônios. Ou Anjos. A explicação mais lógica, mas não a melhor sucedida, foi de seriam imagens de espelhos, postos por alguém para atemorizar os inavsores. (Esses artefatos eram proibidos exceto no Palácio de Xeque). Tal versão colocou em risco a vida do seu autor, o qual sumiu, dizem que nas masmorras do palácio, outros que retornou para a terra dos Homens Duplicados.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

07 de Janeiro


Fundação da Aldeia-contra-a-lógica

Após sufocar o levante da setecentésima septuagésima sétima cidade [com a excessiva coerência e o próprio exagero dos números permitindo pôr em dúvida esta informação], o Sultão Tohirbek Yursinoy [barba vermelha e dedos sujos de gordura] ordenou a construção à margem do Golfo [areias brancas e tamareiras] de uma cidade na qual a única lógica seria o seu Poder [palavras do seu Vizir Feruz , do clã dos Oygul, antes de levar 99 chibatadas por seu bom trabalho, em mais uma demonstração de falta de lógica].

Na Aldeia, Yursinoy construiu palácios de ouro e pedras preciosas e os doou a mesquinhos sedentos de dinheiro, enquanto homens honrados ganhavam cubículos em que mal cabiam os pés. Numa cidade quente, as árvores foram cortadas. Leis severas proscreviam a prostituição enquanto os guardas eram ordenados a incentivá-la em disfarce. A expansão da cidade se dava sobreas árvores de óleo, seu virtual único produto de exportação.

O povo tudo pedia ao Sultão, que dava deliciosos doces ou bofetadas para o mesmo feito. Seu Vizir insistia em seguir um caminho estreito e às vezes recebia feudos e outras permanecia meses à beira do reino do Paraíso, de tão graves os ferimentos. Sua neta Oygul [olhos negros e cabelos na cintura] teve a coragem de olhar [olhos secos] enquanto o avô recebia os 99 açoites. Concluiu que o culpado de tudo eram os machos da espécie, e que nem Amhitar nem a Esfera Inteira teriam paz sob o domínio deles.

domingo, 6 de janeiro de 2013

06 de Janeiro

Misterioso Não-Suicídio de Spiro Alimova, o odiador-da-vida


Foi no primeiro dia do mês Dhu´l-Hijja do ano do profeta de 619 (ano 1223 dos cristãos) que os carcereiros viram vazia a cela de Spiro Alimova na madrugada de sua execução. O fato de, em lugar do prisioneiro, encontrarem apenas uma gravura de tigre rasgada em três pedaços, duas esferas de goma e um carretel de fina linha apenas gerou mais fantasias pelo povo.

Spiro Alimova bradava que todas as religiões praticam a falsidade, pois todas elas pregam haver um mundo melhor que este para os justos. Mas todos a começar dos sultões e papas apegam-se desesperadamente a este mundo. E concluiu que a mais bela, a mais coerente de todas as ações é o suicídio.

Diziam: a vida é bela! E ele mostrava doença e púnheis de assassinos. Diziam: Deus é pai! E ele dizia ser indelicadeza deixar o pai esperando. Seus inimigos conseguiram convencer o Grande Conselho a degolá-lo. Comemoraram-lhe o  sumiço: ele se acovardara, portanto perdera a credibilidade.

Os estranhos objetos encontrados possibilitaram cerca de três dezenas de escolas de pensamento derivadas. Uma delas, que se denominava Aqueles da Completa Igualdade, pregava o nivelamento total dos homens, e teve Raya Oygul e Houssnida Abdumalik como seguidores. A explicação oficial, no entanto, foi que Spiro Alimova fugiu de medo da morte e terminou seus dias como engraxate numa cidade à beira do Grande Golfo. A razão ou o medo da degola a transformou em versão aceita.

sábado, 5 de janeiro de 2013

05 de Janeiro

Tradução da frase misteriosa de Houssnida Abdumalik


Em 1917 aconteceu já no calendário Juliano o estalo de gênio que inspirou o Marquês Houdetot de Saint Lambert a traduzir a inscrição de Houssnida Abdumalik encontrada na quinta caverna do primeiro octaedro (e esse número baixo não passou despercebido aos estudiosos). Desprezando as versões que atribuíam o escrito a uma versão proto-altaica do guarani ou a uma civilização extraterrestre conhecida como Katikons ou Saathicoons, conforme a versão, o sábio da cidade de  Annecy simplesmente a considerou uma versão da língua francesa recopiada três vezes em  espelhos convexos. A inscrição se resumia à frase

Os tempos eram mudados; mas eu permanecia o mesmo 
(Les temps étaient changés; mais j´étais demeuré le même).

Essa solução simples não deveria ter senão aumentado o prestígio de seu autor se Saint Lambert não argumentasse que ela se encontra no livro X das Confissões de Jean-Jacques Rousseau. E que os poucos incidentes na vida de Houssnida Abdumalik, além de certas repetições em seu nome (“ou” e “ss”) permitiam concluir que Houssnida era na verdade Rousseau.

Tal versão foi considerada folclórica até que Houdetot de Saint Lambert se voluntariou ao exército francês e morreu a vinte passos do Forte do Homem Morto na retomada de Verdun. Espiritualistas consideraram então que Houdetot era a reencarnação de Rousseau e de Houssnida. Isso, é claro, apenas acrescentou à risibilidade de todo o episódio.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

04 de Janeiro


Gloriosa auto-finalização de Gulshoda, o Supremo Coerente

Nozimjon pensou Ou os ditos das religiões estão certos ou estão errados. Decidiu que estavam certos. E passou a viver como eles. Seus filhos esfaimavam para que ele distribuísse comida aos pobres; suas esposas se queixavam de sua estrita adesão à castidade.

Depois guerra civil do ano dos infiéis de 625 DC, a pequena população restante buscou o homem com fama de santo.

Inicialmente o governo de Gulshoda, o Supremo Coerente, como agora o chamavam, aliviou a população cansada de Senhores enriquecidos e de espadas pingando sangue. Mas o domínio do novo líder acumulou contras. Ele passou a exigir a mesma coerência de todos. Primeiro pregou a palavra e quando esta se revelou insuficiente mandou os guardas passar a fio de espada quem se negava a dar esmolas ao cego da esquina, e também aos homens que frequentavam meretrizes.

Creem os historiadores que uma revolução teria sido o seu fim quando uma nova ideia lhe veio: os líderes devem ser os últimos a receber os benefícios. Passou a comer apenas o que sobrava. Isso foi suficiente por algum tempo, até que uma inundação cortou a estrada pela qual vinham os grãos até a capital, e ele, coerentemente, passou a não comer, pois depois de comerem todos, nada lhe sobrava. Sua morte por inanição, à qual sem deu o nome de auto-finalização, foi publicamente lamentada e discretamente aplaudida pelo povo, exceto pela teimosa seita dos Gulhayos, cujo nome é inspirado no seu.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

03 de Janeiro


Primeiro possível contato Ufológico

Neste dia diz-se com mais convicção que base documental que Bahodir emergiu do 99º deserto do Norte trazendo duas placas de cobre. Em frente à multidão Bahodir chorou copiosamente e perfurou  com uma gazua uma das placas até torná-la ilegível. Depois tomou a outra placa e com o olhar alucinado [que gerações muito posteriores visualizaram como o olhar de Charlton Heston trazendo a Lei no filme Os Dez Mandamentos] e apesar das mãos que tremiam como em um terremoto escreveu na areia vinte e nove caracteres que os sábios tentaram em vão decifrar depois do desaparecimento do sábio – do qual os rebeldes acusaram a inveja do Supremo Xeque e este acusou a cobiça dos Sumos-sacerdotes e estes acusaram a outros e por diante.

Somente 667 rotações solares do 51º calendário depois apareceu uma inscrição em língua uzbeque logo abaixo da placa no santuário em que ela estava guardada:

Com este amuleto os Saticons poderão conquistar toda a galáxia

Ufologistas têm interpretado isso como um contato imediato ocorrido no reino de Amhitar. Uma versão para o surgimento da tradução, não de todo incompatível com tal teoria, afirma que o próprio Badohir emergiu em uma nave negra para escrever a frase. O Conselho de Amargos condenou os responsáveis por esta história a 77 chibatadas, mas eles fugiram antes do castigo prometendo trazer a vingança de Badohir. Esta nunca veio.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

02 de Janeiro

Volta da Expedição de Sayyd Umarkhan


No ducentésimo segundo ano da Hégira retornaram pelo portão da desolada estrada do Nor-Noroeste os restos da expedição do até então considerado sábio Sayyd Maruf Umarkhan. Mesmo com a vilania que dominava o Reino naquele tempo – quem o diz é o cronista Al-Wazahari Nilufar, tio do historiador – o espetáculo logo deixou de provocar risos para trazer pena. Dos 333 homens (o número 3 era uma das obsessões do Xeque), só restaram quatro, e em trapos: três enlouquecidos e o próprio Sayyd.

Contou este (e ninguém acreditou) que além do octoedro número 4872 havia 99 desertos, e depois deles, um reino de prata, ouro e ferozes guerreiras. As mulheres guerreavam, cuidavam dos negócios da guerra e do comércio e ensinavam as meninas a serem futuras guerreiras. As guerreiras reprimiram (diziam) antigos levantes por parte dos homens , não sem grande mortandade para os mesmos, que agora se conformavam com sua condição. Os homens poliam armaduras, lavavam panos e cozinhavam o trigo moído, e garantiam a reprodução e o prazer. Bordéis masculinos pipocavam, não sem algum escândalo e consequente segredo.

Poucos acreditaram na história do ex-considerado sábio. Tendo levado 333 chicotadas por faltar com a verdade para os filhos da verdadeira fé, terminou seus dias não sem desonra, contando sua história para o riso alheio e fazendo espetáculos de loucura com seus infelizes companheiros – o que conseguia sem dificuldade, já que eram  realmente loucos.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

01 de Janeiro

Numismática

Reza a tradição que foi nesse dia [equivalente ao décimo-terceiro dia] do ano cinquenta mil quatrocentos e oitenta e nove que o Xeque Mlavaz Abdullah, cedendo aos apelos do Sumo Sacerdote, cunhou as primeiras três moedas do Império de Amhitar. Tal Xeque [essa denominação é um anacronismo consagrado pela preguiça dos historiadores, pois não havia esse título antes do domínio islâmico] também instalou as primeiras latrinas do Reino, e essas duas proezas não quedaram independentes.

Segundo três dos cinco relatos que ainda perduram [um é ilegível e o outro é inconclusivo] o Xeque Mlavaz reuniu todo o povo na mais fedentina das fossas e com suas fortes mãos [que decapitavam dezessete traidores de um só golpe segundo o relato algo exagerado de Abdul Al-Wazahari] apresentou as formas das moedas e aproximando-se das fossas malcheirosas, encheu-as de porcaria. Bradou que [e seu brado foi ouvido pelos 7.999 octoedros do Reino, ainda segundo o entusiasmado  cronista] que, se seu povo quisesse brigar, lutar, inimizar-se por aquilo, trair pais e mães e irmãos por aquilo, ele nada teria a opor. E distribuiu as moedas de esterco.  Dois economistas consideraram nobre sua atitude, ensinando as virtudes da bondade ao povo embora de maneira rude, mas sua opinião estava longe de ser majoritária.