quinta-feira, 29 de agosto de 2013

29 de Agosto

O Sombra

Alimova Farhod dividiu o próprio destino em dois. Homem comum, vestia o paletó e o colarinho, passava manteiga em três torradas ao café, e encostava os lábios na testa da mulher enquanto pensava no horário do bonde e na velocidade na qual teria de correr para pegá-lo.

O dia 29 de agosto de 1914 abalou sua rotina quando se encontrou consigo mesmo numa esquina dobrada. Não precisou de caldeirões mágicos, brincadeiras de copo ou clima de mistério: era ele mesmo.

Não se olhou nos olhos [teve vergonha – nunca se achou bonito e mal se mirava ao espelho]. O outro não devolveu nenhum olhar. Barbado, roupas em desalinhamento quase que estudado, o segundo Alimova deixava aparecer [talvez propositalmente] uns cabeçalhos de panfletos políticos onde se lia Abaixo a Guerra! [a Primeira Mundial estourara dias antes].

Alimova nunca mais viu o Sombra [como o chamou]. Dedicou-se [escondido da esposa e de tudo] a imaginar uma vida para ele, um Outro revolucionário, amante e viajador.

Só se soube de sua [estranha] atividade quando [a 29 de agosto de 1944, em outra guerra] desapareceu em algum ataque a tanques alemães em algum charco na Polônia. [E seus papéis foram publicados não sem repercussão]. No mesmo dia, o comunicado oficial informou que outro Alimova Fahrod também desapareceu, um traidor nas linhas inimigas. A [óbvia] versão oficial é que foi mera coincidência, e que o Sombra não existe.

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